Victoria Santa Cruz - Poesia: substantivo feminino (e para sempre vivo), por Oluwa Seyi
- Gustavo Marcasse
- 1 de nov.
- 6 min de leitura

se me gritassem negra
à grande e inesquecível Victoria Santa Cruz
se me gritassem negra
eu agradeceria
sou gritantemente negra
mas ainda me honraria
que dentre tantas muitas marcas
a mais óbvia de minhas graças
desse corpo à gritaria
apesar do fundo de ironia
haveria verdade mais exata
que a da minha melanina?
o maior órgão de meu corpo
não se permitiria à tão grande mentira:
com isso não brincaria.
negra, negra, negra
continuo levando nas costas
na língua, nas mãos, nas pernas à mostra
o que jamais foi Santa cruz
o que sempre será Victoria
afinal, já tenho a chave
negra, sim
negra, sou
negra na pele
negra na alma
negra até na utopia
se me gritassem negra
eu, ao coro, me juntaria
negra, negra, negra! (SEYI, 2024, p.27-28)
Salve, Salve, pessoal! Hoje este texto mistura alegria, gratidão e muita honra. Exaltar a voz e a produção da poeta, coreógrafa, figurinista e militante afro-peruana Victoria Santa Cruz (1922-2014) é importante, para além do óbvio movimento de relembrar e celebrar seu legado, porque sinto que, nesse processo, abraço também várias mulheres ao mesmo tempo. Abraço mulheres que se irmanam em sua negritude e no desejo de deixar estampado no mundo o orgulho de ser quem se é. Não negociar, não eufemizar, não temer: apenas encarar o mundo de cabeça erguida, munida e adornada da negrura política, estética e ancestral que nos cabe.
O poema que trago acima, com referências diretas à Victoria e seu emblemático “Me gritaron negra”, abrindo nosso #Pretapalavra, foi escrito num momento muito especial. Cursei uma disciplina, cerca de dois anos atrás, ministrada por Conceição Evaristo durante seu período como titular da Cátedra Olavo Setúbal, sediada na Universidade de São Paulo. Essa disciplina, que era focada em compreender e nutrir o conceito evaristiano de Escrevivência a partir de várias perspectivas e áreas do conhecimento, me deu a oportunidade de pensar como esse exercício de escrita específico se expressaria na minha produção. Foi então que este poema tão importante para mim nasceu. Ele é parte da minha resposta prática à pergunta "Onde sua produção artística/ acadêmica encontra a Escrevivência?”, a qual entreguei como trabalho final da disciplina em questão. Descobri, à época, que esse encontro se dá de muitas e viscerais maneiras, além das que eu já supunha.
“Se me gritassem negra” é definitivamente uma mirada no espelho. Um processo deveras íntimo, mas também público: sou eu, o espelho e o mundo ao redor, compondo a imagem que se apresenta. Um reflexo que a própria Victoria Santa Cruz, em sua ousadia e genialidade, me aponta e tece elogios à beleza, à imponência, à entrega. Escrever um texto poético neste tom, com este léxico, recuperando tal inspiração, é entender como funciona o abebé de Oxum, dona do meu ori: podem até querer reduzir o ancoramento no eu a uma conduta narcísica, mas ele é arma de autopercepção e construção estética individual mas também coletiva. Quando eu, ocupada da minha negritude, conjugo verbos na primeira pessoa do singular, sei que o plural está implícito no meu discurso, porque minhas compreensões sobre ser negra nutrem-se de outras águas tão negras quanto. Hoje, esse meu poema me acompanha como um mantra de autorreconhecimento e uma forma que frequentemente escolho para me apresentar, dizer a que vem minha poesia. Dona Conceição Evaristo não sabe, mas sua requisição de trabalho final, ritual acadêmico tão conhecido nosso, transformou-se em uma das produções poéticas que mais me orgulha ter concebido. Oxum realmente esconde ouro em lugares impensáveis.
Victoria e sua história de vida interessantíssima me surgiram, pelo que me recordo, em 2014, quando ingressei no Coletivo Negro da USP. Seu poema/ sua canção sobre ser negra e decidir celebrar e amar esse fato atingiu-me de cheio. Nunca mais fui a mesma depois de ouvir aqueles versos, e toda vez que os reencontro algo ainda se move dentro de mim. Seu texto, que transcrevo a seguir, reanima em mim, como meu poema em diálogo deixa notar, o gosto por ser eu mesma.
Me Gritaron Negra
Tenía siete años apenas,
apenas siete años,
¡Que siete años!
¡No llegaba a cinco siquiera!
De pronto unas voces en la calle
me gritaron ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
“¿Soy acaso negra?” – me dije ¡SÍ!
“¿Qué cosa es ser negra?” ¡Negra!
Y yo no sabía la triste verdad que aquello escondía. Negra!
Y me sentí negra, ¡Negra!
Como ellos decían ¡Negra!
Y retrocedí ¡Negra!
Como ellos querían ¡Negra!
Y odié mis cabellos y mis labios gruesos
y miré apenada mi carne tostada
Y retrocedí ¡Negra!
Y retrocedí…
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Neeegra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
Y pasaba el tiempo,
y siempre amargada
Seguía llevando a mi espalda
mi pesada carga
¡Y cómo pesaba! …
Me alacié el cabello,
me polveé la cara,
y entre mis entrañas siempre resonaba
la misma palabra
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Neeegra!
Hasta que un día que retrocedía,
retrocedía y que iba a caer
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¡Negra! ¡Negra! ¡Negra!
¿Y qué?
¿Y qué? ¡Negra!
Sí ¡Negra!
Soy ¡Negra!
Negra ¡Negra!
Negra soy
¡Negra! Sí
¡Negra! Soy
¡Negra! Negra
¡Negra! Negra soy
De hoy en adelante no quiero
laciar mi cabello
No quiero
Y voy a reírme de aquellos,
que por evitar – según ellos –
que por evitarnos algún sinsabor
Llaman a los negros gente de color
¡Y de qué color! NEGRO
¡Y qué lindo suena! NEGRO
¡Y qué ritmo tiene!
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO
Al fin
Al fin comprendí AL FIN
Ya no retrocedo AL FIN
Y avanzo segura AL FIN
Avanzo y espero AL FIN
Y bendigo al cielo porque quiso Dios
que negro azabache fuese mi color
Y ya comprendí AL FIN
Ya tengo la llave
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO
¡Negra soy! (SANTA CRUZ, 1978, Doc Victoria—Black and Woman)
Victoria Eugenia Santa Cruz Gamarra nasceu no Peru em 1922, formou-se na França, foi respeitada folclorista, estilista, dançarina e coreógrafa em sua terra natal, esteve à frente de festivais e institutos nacionais de arte e cultura, foi professora universitária nos Estados Unidos da América e viajou muitos países do mundo levando seu trabalho artístico e de pesquisa. Não publicou livros de poemas, mas seu poema “Me gritaron negra”, sozinho, consegue, quase cinco décadas depois de lançado, movimentar o que muitas obras de fôlego não conseguem. Faleceu em 2014, e deixou um legado fértil de respeito à memória e às artes negras do Peru e da América Latina.
Que o trabalho de Victoria siga inspirando mulheres negras ao redor do mundo a encontrar e abraçar a própria dignidade. A dar outros nomes para o que nos feriu, reduziu, maculou. Nossa pele não carrega culpa alguma pela violência que sofremos. Os gritos de “Negra!”, graças a Victoria Santa Cruz, hoje podem significar amparo, manutenção de comunidade, enaltecimento, identificação. Poesia! Que saibamos, cada vez mais, rimar nossa negritude com o orgulho de habitar a própria pele.
Oluwa Seyi é curadora no projeto PRETAPALAVRA, uma iniciativa da Capivara em parceria com Maria Carolina Casati, para divulgar e amplificar as vozes de escritoras negras.

Oluwa Seyi nasceu em São Paulo, na década de 90. É poeta, pesquisasora, critica literária e percussionista. Possui graduação e mestrado em Letras pela Universidade de São Paulo, e atualmente desenvolve pesquisa de doutorado também em Letras, na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela mesma instituição de ensino. Seus interesses de pesquisa são a produção artística de mulheres negras e a representação da experiência afrorreligiosa nas artes. Autora do livro de poesia O que há de autêntico em uma mãe inventada (Ed. Urutau, 2022), do zine estudo poético do corpo (2021, edição independente) e da plaquete digital Poemas que atravesssam meu corpo negro & fêmeo (2024, edição independente) . Tem poemas, contos e artigos publicados em revistas e antologias literárias e acadêmicas de diversos estados do país, como Cartas para Esperança (Ed. Malê, 2022) e Cadernos Negros 44 e 45 (Ed. Quilombhoje, 2022/2024). Além da escrita literária, interessa-se em tradução de poesia e escrita para áudio-visual. Atualmente é integrante do Sarau das pretas, coletivo artístico-literário gestado por mulheres negras. Escreve desde que se recorda e não consegue imaginar a si mesma longe do lugar de produtora, apreciadora e crítica de literatura.





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