Poesia: substantivo feminino (e para sempre vivo), por Oluwa Seyi
- Gustavo Marcasse
- 26 de jul.
- 4 min de leitura
o segredo das semeadoras
às escritoras negras, espelhos e faróis, que desabsurdaram a
imagem de uma mulher preta munida de caneta
por costume, eu carregava versos anêmicos
um minúsculo arbusto de galhos tristes
que me prometiam que cresceria
se eu o regasse cotidianamente
então, reguei o arbusto por meses a fio
com água salgada e fervente
— a água mais fácil de achar —
mas o projeto de árvore seguia acanhado e taciturno
rimava, quando podia, apenas o mais aparente das coisas
não aprendeu a dizer as palavras que eu lhe repetia
pendia, num tênue fio, entre a vida e a morte
vendo minha angústia
e o estado quase irrecuperável de meu arbusto
um grupo incontável de semeadoras de árvores poéticas
aproximou-se de mim e confiou-me um segredo:
“decante a água salgada em suas mãos
filtre as impurezas nas curvas de seus cabelos
deixe que ela se esfrie dançando em sua língua
e só então regue seu arbusto!
talvez ele seja para sempre miúdo
mas nunca mais amargurado
nunca mais emudecido”
como recomendado, ignorando as queimaduras
dei corpo ao ritual
e em pouco tempo meu arbusto abriu-se em flor
nunca tive a chance de agradecer àquelas mulheres
que me ensinaram sobre cultivo
— de plantas e de poemas —
mas levo comigo vários de seus livros-sementes
e o maior dos ensinamentos:
a água importa, mas é a devoção
— às plantas e aos poemas —
que faz germinar
(SEYI, 2021, p. 37-38)
Salve, salve, pessoal! Sou Oluwa Seyi, poeta e pesquisadora de São Paulo vivendo em Salvador, e reabro com alegria este espaço literário afro-feminino tão afetivo, nosso #Pretapalavra, que me abraça (e eu abraço de volta) há vários meses. Com o poema acima, publicado em meu livro O que há de autêntico em uma mãe inventada (Ed. Urutau, 2021), inauguro um novo capítulo do blog, que gosto de chamar de “Poesia: substantivo feminino (e para sempre vivo)". Aqui, mensalmente, honrarei e homenagearei poetas negras que já partiram para a eternidade e, de lá, ainda são sinônimo de amor, compromisso, valentia e inteligência.
Escolher apenas cinco ancestrais da poesia feminina negra foi uma missão dificílima. Mas dois princípios ajudaram-me a espantar um pouco o sentimento de estar sendo injusta e deixando de dispensar meus respeitos às mulheres que, como no meu poema, ensinaram-me sobre a devoção à poesia. O primeiro deles é o ineditismo no #Pretapalavra. Audre Lorde, bell hooks, Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis, Maya Angelou e Toni Morrison, sobre as quais eu com certeza teria muito a dizer, já têm belíssimos textos em seu tributo (os quais recomendo efusivamente a leitura). O segundo princípio, de sentido muito mais íntimo, é a relação que essas mulheres têm com a minha experiência na poesia, na academia, na tradução, na militância e, centralmente, no cotidiano singular de uma mulher inegociavelmente negra e obstinada.
Sempre, via de regra, muitos nomes, rostos e produções não caberão ou serão contemplados nas leituras que fazemos. É necessário, de minha parte, fazer as pazes com a incompletude, porque seu oposto talvez nem exista. Mas deixo aqui minha reverência a todas as poetas, escritoras, intelectuais negras que regaram suas palavras com toda a água que encontraram em seus caminhos, a fim de que elas crescessem, rompessem bolhas e muros e chegassem até nós, nesse futuro que chamamos de hoje.
Bendigo essas mulheres que, já do outro lado do rio da vida, continuam acenando e forjando mensagens que nos fortalecem (ou suavizam) quando agarramos a certeza de que tudo é muito difícil e, por isso, irrealizável. Quando a saúde mental desarranja-se, quando o amor próprio e dos outros foge de nós, quando o trabalho e o cuidado alheio torna-se prioridade rígida, quando os planos adquirem forma de pesadelo… quando tudo parece ruir, um abraço que não nos julga pode aparecer. Às vezes, concreto (amigo, fraterno, parental), às vezes simbólico (uma canção, uma história de vida, um poema). Sei que não minto ou exagero quando digo que essas mulheres ocupam o espaço desse abraço para muitas de nós, em nossas batalhas silenciosas e cotidianas. Digo por mim que foram esses abraços de papel e tinta que retraçaram várias das minhas rotas, possibilitaram a aposta no sonho e ajudam a me sustentar quando o velho e conhecido peso dos dias ameaça ser grande demais — creio que não preciso pormenorizar as adversidades enfrentadas por pessoas pretas na academia e na literatura, certo?
Serão sim apenas cinco poetas negras homenageadas por mim neste #Pretapalavra nos próximos meses, mas são cinco que materializam um batalhão. Um batalhão de mulheres amplamente conhecidas por seus trabalhos, mas também as anônimas; as ancestrais e as ainda encarnadas; as que escrevem desde que aprenderam a segurar canetas e as que não veem na literatura um caminho para si; africanas, norte e sul-americanas, brasileiras, nós todas. Que estes textos, fagulha da minha gratidão, possam elevar-se ao orum e devolver o abraço que a poesia dessas mulheres já foi e segue sendo para mim. Agradeço por tudo e por tanto!
Oluwa Seyi é curadora no projeto PRETAPALAVRA, uma iniciativa da Capivara em parceria com Maria Carolina Casati, para divulgar e amplificar as vozes de escritoras negras.

Oluwa Seyi nasceu em São Paulo, na década de 90. É poeta, pesquisasora, critica literária e percussionista. Possui graduação e mestrado em Letras pela Universidade de São Paulo, e atualmente desenvolve pesquisa de doutorado também em Letras, na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela mesma instituição de ensino. Seus interesses de pesquisa são a produção artística de mulheres negras e a representação da experiência afrorreligiosa nas artes. Autora do livro de poesia O que há de autêntico em uma mãe inventada (Ed. Urutau, 2022), do zine estudo poético do corpo (2021, edição independente) e da plaquete digital Poemas que atravesssam meu corpo negro & fêmeo (2024, edição independente) . Tem poemas, contos e artigos publicados em revistas e antologias literárias e acadêmicas de diversos estados do país, como Cartas para Esperança (Ed. Malê, 2022) e Cadernos Negros 44 e 45 (Ed. Quilombhoje, 2022/2024). Além da escrita literária, interessa-se em tradução de poesia e escrita para áudio-visual. Atualmente é integrante do Sarau das pretas, coletivo artístico-literário gestado por mulheres negras. Escreve desde que se recorda e não consegue imaginar a si mesma longe do lugar de produtora, apreciadora e crítica de literatura.





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