Alzira Rufino - Poesia: substantivo feminino (e para sempre vivo), por Oluwa Seyi
- Gustavo Marcasse
- 20 de nov.
- 5 min de leitura

quilombo feminino
mulheres negras resgataram-me do abismo
incontáveis vezes e sem fazer ideia do milagre
mulheres negras foram o alfabeto do meu novo nome
à época, eu não sabia agradecer
só tinha armas em punho
e não sabia como colher flores
com elas aprendi a guardar as espadas
minhas mãos, graças ao amor, tornaram-se versáteis
mulheres negras resgataram-me do abismo
incontáveis vezes e sem fazer ideia do milagre
emergi renovada do fundo de mim mesma
sem medo das críticas, do outro e do espelho
sendo tão parecida com elas
como poderia eu não ser bela também?
aprendi e aprendo através de seus olhos
sobre o poder indiscutível do quilombo feminino
mulheres negras resgataram-me do abismo
incontáveis vezes e sem fazer ideia do milagre
mesmo aquelas que hoje estão distantes
alçando outras como eu de diferentes tipos de abismo
pela luta, pela arte, talvez pelo simples olhar
que vê e acolhe dores quase imperceptíveis
minha poesia resistiu à seca e rompeu o solo pedregoso
e graças às mulheres negras
hoje eu sei colher o belo em mim
(SEYI, 2024, p.9-10)
Salve, Salve, pessoal! Hoje, dia da Consciência Negra, tenho a honra de enaltecer a vida e a obra de Alzira Rufino (1949-2023), importantíssima voz na defesa dos direitos das mulheres negras no Brasil. O poema de minha autoria que trago acima, abrindo este texto especial, dialoga muito com o significado e o trabalho desta ancestral pioneira, sensível e fundamental para a luta do povo negro por quase quatro décadas de sua vida. É por trajetórias como a de Alzira, tão centrada no cuidado e na valorização da comunidade, que senhoras, jovens e meninas negras ostentam cada dia mais autoestima e orgulho por serem quem são. Eu sou uma dessas mulheres que podem encontrar em suas mais velhas espelhos de graça,
criatividade, vigor e poesia. Que sorte a minha!
Alzira, “feminegra”, como designava-se, realmente deu corpo a um quilombo feminino, título do poema que abre este #Pretapalavra. Em 1986, Alzira fundou o Coletivo de Mulheres Negras da Baixada Santista, espaço de proteção, autossuficiência e encontro para mulheres negras. Em 1990, também fundou a Casa de Cultura da Mulher Negra, fornecendo auxílio de ordem profissional, jurídica e psicológica a mulheres em situação de vulnerabilidade. Seus esforços em nome da comunidade e pela dignidade de mulheres negras brasileiras ressoam e inspiram, até hoje, o enfrentamento feminino daquilo que nos desumaniza, apequena ou fere.
No poema que trago acima, aponto como a coletividade é importante para a construção da identidade e da autopercepção de mulheres negras. Foi observando, tomando nota, caminhando junto e tendo muitas mãos negras me amparando que eu pude criar e lapidar aspectos primordiais de mim. São as matriarcas da minha família, as companheiras do Coletivo Negro da USP, as amigas que a universidade, a militância, a poesia, as redes sociais e a vida trouxeram, as intelectuais que leio, ouço e pesquiso e também as mulheres que me lêem e se identifcam com o que consigo e sei escrever: todas elas são o oxigênio e a caligrafia desse meu “quilombo feminino”. Alzira Rufino, com honra que transborda, é uma dessas tantas.
Em 1988, Alzira autopublicou o livro de poesia Eu, mulher negra, resisto, obra cujo título se tornou uma bandeira significativa de valentia e não apagamento. Estampando vestuário de marcas afirmativas, sendo grito de ordem em manifestações e simbolizando a posição histórica de mulheres negras dentro e fora dos movimentos negros organizados, a máxima “Eu, mulher negra, resisto” situa-se na poderosa encruzilhada da política com a literatura, demonstrando como a experiência negra assume os mais diferentes e complexos formatos, a depender das vozes que a enunciam. No poema “Brasil Palmares”, um dos meus favoritos da obra, Alzira recupera a memória e a importância da resistência negra frente à escravatura. Neste 20 de novembro, data em que se celebra a agência negra pela liberdade, o belo poema de Alzira exalta a força da comunidade:
Brasil Palmares
Rostos com a imensidão do mar
sem pingos de desespero
negros
não mais fujões
libertam seu nome
recém-nascido
como árvore brotando flores
flores grávidas de frutos
sem cheiro de noite gemida
no peito movimento de força
e o sol fazendo a mistura
com a chama de Zumbi.
(RUFINO, 1988, p. 43)
Alzira dos Santos Rufino nasceu na cidade de Santos (SP) em 1943, foi enfermeira por formação, sacerdotisa de candomblé, editora da revista Eparrei e esteve à frente de organizações e coletivos negros. Teve seu nome citado na lista de 1000 mulheres para o Prêmio Nobel da Paz, recebeu várias homenagens e honrarias e dedicou muitos anos de sua vida à luta pública contra o racismo e as violências de gênero no Brasil e nas Américas. Lançou livros de poesia, prosa e para as infâncias, foi coautora de Cadernos Negros e de outras importantes antologias teórico-críticas sobre a experiência negra e feminina. Faleceu em 2023, legando para nós que ficamos, descendentes de sua determinação, a certeza de que a união negra não pode e nem será subestimada.
Alzira, mulher negra, resistiu. Resiste, ainda, semente viva em nós, “flores grávidas de frutos”. Resistimos, com ela e graças a ela, cada uma à sua maneira e nas próprias trincheiras: nas escolas, nos hospitais, na política, na academia, na arte, nas comunidades, nas ruas, fundo em nós mesmas. Resistimos na fúria, no amor, na utopia e na realidade, sozinhas e acompanhadas, inclusive ressignificando e dando outros matizes à palavra “resistência”. Afinal, resistir também é questionar e negar os lugares comuns de naturalização da força sem limites do corpo negro. Resistir é jamais esquecer que somos carne, osso, alma e sonho — principalmente estes últimos. E por isso nós, mulheres negras, resistimos!
Oluwa Seyi é curadora no projeto PRETAPALAVRA, uma iniciativa da Capivara em parceria com Maria Carolina Casati, para divulgar e amplificar as vozes de escritoras negras.

Oluwa Seyi nasceu em São Paulo, na década de 90. É poeta, pesquisasora, critica literária e percussionista. Possui graduação e mestrado em Letras pela Universidade de São Paulo, e atualmente desenvolve pesquisa de doutorado também em Letras, na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela mesma instituição de ensino. Seus interesses de pesquisa são a produção artística de mulheres negras e a representação da experiência afrorreligiosa nas artes. Autora do livro de poesia O que há de autêntico em uma mãe inventada (Ed. Urutau, 2022), do zine estudo poético do corpo (2021, edição independente) e da plaquete digital Poemas que atravesssam meu corpo negro & fêmeo (2024, edição independente) . Tem poemas, contos e artigos publicados em revistas e antologias literárias e acadêmicas de diversos estados do país, como Cartas para Esperança (Ed. Malê, 2022) e Cadernos Negros 44 e 45 (Ed. Quilombhoje, 2022/2024). Além da escrita literária, interessa-se em tradução de poesia e escrita para áudio-visual. Atualmente é integrante do Sarau das pretas, coletivo artístico-literário gestado por mulheres negras. Escreve desde que se recorda e não consegue imaginar a si mesma longe do lugar de produtora, apreciadora e crítica de literatura.





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