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Alzira Rufino - Poesia: substantivo feminino (e para sempre vivo), por Oluwa Seyi


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quilombo feminino


mulheres negras resgataram-me do abismo

incontáveis vezes e sem fazer ideia do milagre

mulheres negras foram o alfabeto do meu novo nome

à época, eu não sabia agradecer

só tinha armas em punho

e não sabia como colher flores

com elas aprendi a guardar as espadas

minhas mãos, graças ao amor, tornaram-se versáteis


mulheres negras resgataram-me do abismo

incontáveis vezes e sem fazer ideia do milagre

emergi renovada do fundo de mim mesma

sem medo das críticas, do outro e do espelho

sendo tão parecida com elas

como poderia eu não ser bela também?

aprendi e aprendo através de seus olhos

sobre o poder indiscutível do quilombo feminino


mulheres negras resgataram-me do abismo

incontáveis vezes e sem fazer ideia do milagre

mesmo aquelas que hoje estão distantes

alçando outras como eu de diferentes tipos de abismo

pela luta, pela arte, talvez pelo simples olhar

que vê e acolhe dores quase imperceptíveis

minha poesia resistiu à seca e rompeu o solo pedregoso

e graças às mulheres negras

hoje eu sei colher o belo em mim


(SEYI, 2024, p.9-10)



Salve, Salve, pessoal! Hoje, dia da Consciência Negra, tenho a honra de enaltecer a vida e a obra de Alzira Rufino (1949-2023), importantíssima voz na defesa dos direitos das mulheres negras no Brasil. O poema de minha autoria que trago acima, abrindo este texto especial, dialoga muito com o significado e o trabalho desta ancestral pioneira, sensível e fundamental para a luta do povo negro por quase quatro décadas de sua vida. É por trajetórias como a de Alzira, tão centrada no cuidado e na valorização da comunidade, que senhoras, jovens e meninas negras ostentam cada dia mais autoestima e orgulho por serem quem são. Eu sou uma dessas mulheres que podem encontrar em suas mais velhas espelhos de graça,

criatividade, vigor e poesia. Que sorte a minha!


Alzira, “feminegra”, como designava-se, realmente deu corpo a um quilombo feminino, título do poema que abre este #Pretapalavra. Em 1986, Alzira fundou o Coletivo de Mulheres Negras da Baixada Santista, espaço de proteção, autossuficiência e encontro para mulheres negras. Em 1990, também fundou a Casa de Cultura da Mulher Negra, fornecendo auxílio de ordem profissional, jurídica e psicológica a mulheres em situação de vulnerabilidade. Seus esforços em nome da comunidade e pela dignidade de mulheres negras brasileiras ressoam e inspiram, até hoje, o enfrentamento feminino daquilo que nos desumaniza, apequena ou fere.


No poema que trago acima, aponto como a coletividade é importante para a construção da identidade e da autopercepção de mulheres negras. Foi observando, tomando nota, caminhando junto e tendo muitas mãos negras me amparando que eu pude criar e lapidar aspectos primordiais de mim. São as matriarcas da minha família, as companheiras do Coletivo Negro da USP, as amigas que a universidade, a militância, a poesia, as redes sociais e a vida trouxeram, as intelectuais que leio, ouço e pesquiso e também as mulheres que me lêem e se identifcam com o que consigo e sei escrever: todas elas são o oxigênio e a caligrafia desse meu “quilombo feminino”. Alzira Rufino, com honra que transborda, é uma dessas tantas.


Em 1988, Alzira autopublicou o livro de poesia Eu, mulher negra, resisto, obra cujo título se tornou uma bandeira significativa de valentia e não apagamento. Estampando vestuário de marcas afirmativas, sendo grito de ordem em manifestações e simbolizando a posição histórica de mulheres negras dentro e fora dos movimentos negros organizados, a máxima “Eu, mulher negra, resisto” situa-se na poderosa encruzilhada da política com a literatura, demonstrando como a experiência negra assume os mais diferentes e complexos formatos, a depender das vozes que a enunciam. No poema “Brasil Palmares”, um dos meus favoritos da obra, Alzira recupera a memória e a importância da resistência negra frente à escravatura. Neste 20 de novembro, data em que se celebra a agência negra pela liberdade, o belo poema de Alzira exalta a força da comunidade:



Brasil Palmares


Rostos com a imensidão do mar

sem pingos de desespero

negros

não mais fujões

libertam seu nome

recém-nascido

como árvore brotando flores

flores grávidas de frutos

sem cheiro de noite gemida

no peito movimento de força

e o sol fazendo a mistura

com a chama de Zumbi.


(RUFINO, 1988, p. 43)




Alzira dos Santos Rufino nasceu na cidade de Santos (SP) em 1943, foi enfermeira por formação, sacerdotisa de candomblé, editora da revista Eparrei e esteve à frente de organizações e coletivos negros. Teve seu nome citado na lista de 1000 mulheres para o Prêmio Nobel da Paz, recebeu várias homenagens e honrarias e dedicou muitos anos de sua vida à luta pública contra o racismo e as violências de gênero no Brasil e nas Américas. Lançou livros de poesia, prosa e para as infâncias, foi coautora de Cadernos Negros e de outras importantes antologias teórico-críticas sobre a experiência negra e feminina. Faleceu em 2023, legando para nós que ficamos, descendentes de sua determinação, a certeza de que a união negra não pode e nem será subestimada.


Alzira, mulher negra, resistiu. Resiste, ainda, semente viva em nós, “flores grávidas de frutos”. Resistimos, com ela e graças a ela, cada uma à sua maneira e nas próprias trincheiras: nas escolas, nos hospitais, na política, na academia, na arte, nas comunidades, nas ruas, fundo em nós mesmas. Resistimos na fúria, no amor, na utopia e na realidade, sozinhas e acompanhadas, inclusive ressignificando e dando outros matizes à palavra “resistência”. Afinal, resistir também é questionar e negar os lugares comuns de naturalização da força sem limites do corpo negro. Resistir é jamais esquecer que somos carne, osso, alma e sonho — principalmente estes últimos. E por isso nós, mulheres negras, resistimos!






Oluwa Seyi é curadora no projeto PRETAPALAVRA, uma iniciativa da Capivara em parceria com Maria Carolina Casati, para divulgar e amplificar as vozes de escritoras negras.



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Oluwa Seyi nasceu em São Paulo, na década de 90. É poeta, pesquisasora, critica literária e percussionista. Possui graduação e mestrado em Letras pela Universidade de São Paulo, e atualmente desenvolve pesquisa de doutorado também em Letras, na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela mesma instituição de ensino. Seus interesses de pesquisa são a produção artística de mulheres negras e a representação da experiência afrorreligiosa nas artes. Autora do livro de poesia O que há de autêntico em uma mãe inventada (Ed. Urutau, 2022), do zine estudo poético do corpo (2021, edição independente) e da plaquete digital Poemas que atravesssam meu corpo negro & fêmeo (2024, edição independente) . Tem poemas, contos e artigos publicados em revistas e antologias literárias e acadêmicas de diversos estados do país, como Cartas para Esperança (Ed. Malê, 2022) e Cadernos Negros 44 e 45 (Ed. Quilombhoje, 2022/2024). Além da escrita literária, interessa-se em tradução de poesia e escrita para áudio-visual. Atualmente é integrante do Sarau das pretas, coletivo artístico-literário gestado por mulheres negras. Escreve desde que se recorda e não consegue imaginar a si mesma longe do lugar de produtora, apreciadora e crítica de literatura.











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