Noémia de Sousa - Poesia: substantivo feminino (e para sempre vivo), por Oluwa Seyi
- Gustavo Marcasse
- 30 de ago.
- 5 min de leitura

Canção à Noémia
Negra voz da liberdade
Ondulando pelo ar, despertou meus ouvidos
Ensinou-me sobre lutas que não eram minhas
Mas eram minhas também:
Independência deixou de ser apenas um verbete
Agora é parte de uma herança indestrutível
Desde Moçambique, seu Sangue Negro correu
E nas veias da Améfrica fez circular utopias
Sua luta poética jamais será esquecida
Ontem, hoje e amanhã honraremos seu legado
Unidas ainda por um senso que nos irmana
Somos semente viva de sua lírica semeadura
A "mãe dos poetas moçambicanos" nos materna também
Salve, salve, pessoal! Gosto, toda vez, de relembrar a alegria e a honra de povoar este espaço afetivo com minhas palavras, ainda mais nessa coleção de textos que pretende homenagear as poetas que, sem as quais, eu teria menos palavras e motivos para escrever. Abro este #Pretapalavra com um poema autoral e inédito, dedicado a Noémia de Sousa (1926-2002), militante política, jornalista, tradutora e poeta moçambicana importantíssima em minha trajetória e voz fundamental pela independência de Moçambique do jugo colonial português. Espero que este singelo carinho a alcance! Escrevi o poema em questão recentemente, especialmente para nosso "Poesia: substantivo feminino (e para sempre vivo)", inspirada pelo sentimento que me invadiu quando li textos de Noémia pela primeira vez, aos 20 anos, no terceiro ano da graduação.
Era tudo muito novo para mim. Finalizado o ciclo básico do curso de letras, onde só li obras do cânone brasileiro, português, francês, grego e latino, de maioria esmagadoramente branca e masculina, pude finalmente me matricular em disciplinas que eu quisesse. O pontapé inicial dessas escolhas foram as Literaturas africanas de Língua Portuguesa I (literatura de Angola) e as Literaturas africanas de Língua Portuguesa IV (narrativas curtas dos PALOP em geral). Nestas duas disciplinas, vivi o prazer de conhecer e me apaixonar por Alda do Espírito Santo, Amílcar Cabral, Ana Paula Tavares, Luandino Vieira, Manuel Rui, Olinda Beja, Ondjaki, Pepetela, Uanhenga Xitu, Viriato da Cruz e outros grandes escritores cujo nome infelizmente me foge. No ano seguinte, escolhi as Literaturas africanas de Língua Portuguesa II, focadas em literatura moçambicana, e foi então que Noémia de Sousa surgiu para mim, luminosa, ladeada por nada menos que João Paulo Borges Coelho, José Craveirinha, Luís Bernardo Honwana, Mia Couto, Paulina Chiziane e Ungulani Ba Ka Khosa.
Lembro-me de devorar os textos literários de Noémia e me sentir arrebatada pela forma amorosa que ela cantava sua África. Não preciso dizer que a maioria dos escritores a que tive acesso durante esse curso eram do sexo masculino, então, poder ler uma mulher africana, negra, cultíssima e comprometida com a liberdade referir-se ao continente africano com tanto afeto e respeito inflou em mim um encanto difícil de nomear. Meu trabalho final para aquela disciplina foi sobre um poema de Noémia dedicado à Billie Holiday, a enorme cantora negra estadunidense, e creio que naquelas breves mas confiantes páginas, escritas há 12 anos, eu ensaiei reflexões importantes que me levaram ao Coletivo Negro da USP e que me organizam até hoje: as que nutrem minha segurança de que a arte produzida por pessoas negras, nos quatro cantos do mundo, nos une e nos reconecta com um senso de comunidade fecundo e ancestral, que nos mostrou e mostra, há séculos, caminhos de liberdade, autogestão e orgulho por nossos acúmulos. Trago a seguir o poema noemiano citado:
A Billie Holiday, cantora
Era de noite e no quarto aprisionado em escuridão
apenas o luar entrara, sorrateiramente,
e fora derramar-se no chão.
Solidão. Solidão. Solidão.
E então,
tua voz, minha irmã americana,
veio do ar, do nada nascida da própria escuridão…
Estranha, profunda, quente,
vazada em solidão.
E começava assim a canção:
“Into each heart some rain must fall…”
Começava assim
e era só melancolia
do princípio ao fim,
como se teus dias fossem sem sol
e a tua alma aí, sem alegria…
Tua voz irmã, no seu trágico sentimentalismo,
descendo e subindo,
chorando para logo, ainda trémula, começar rindo,
cantando no teu arrastado inglês crioulo
esses singulares “blues”, dum fatalismo
rácico que faz doer
tua voz, não sei porque estranha magia,
arrastou para longe a minha solidão…
No quarto às escuras, eu já não estava só!
Com a tua voz, irmã americana, veio
todo o meu povo escravizado sem dó
por esse mundo fora, vivendo no medo, no receio
de tudo e de todos…
O meu povo ajudando a erguer impérios
e a ser excluído na vitória…
A viver, segregado, uma vida inglória,
de proscrito, de criminoso…
O meu povo transportando para a música, para a poesia,
os seus complexos, a sua tristeza inata, a sua insatisfação…
Billie Holiday, minha irmã americana,
continua cantando sempre, no teu jeito magoado
os “blues” eternos do nosso povo desgraçado…
Continua cantando, cantando, sempre cantando,
até que a humanidade egoísta ouça em ti a nossa voz,
e se volte enfim para nós,
mas com olhos de fraternidade e compreensão!
(SOUSA, 2001, p. 134-135)
Carolina Noémia Abranches de Sousa nasceu em Moçambique, esteve exilada em Paris, viajou por vários países da África escrevendo sobre as Independências Nacionais e faleceu em Portugal. Foi uma jornalista e tradutora que utilizou seu capital cultural e social para veicular ideias de liberdade. Escrevia poesia desde a infância, mas nunca reuniu sua obra, que esteve dispersa em jornais e revistas até 2001, quando Sangue Negro foi editado e publicado em Moçambique, pela Associação de Escritores Moçambicanos (AEMO).
Em 20 de setembro de 2026, celebra-se o centenário de Noémia, e espero que diversas comemorações revistam essa data de toda a lembrança e festa que ela merece. Que em Moçambique, no Brasil, nos PALOP e em todos os espaços em que Noémia esteve sendo emissária da autonomia dos povos negros jamais se esqueça o lugar vital da luta política, mas também do ânimo artístico, na conquista de um mundo mais justo.
Obrigada, Noémia! A menina que fui, ao te ler, iluminou-se e cresceu muito. A mulher que sou está feliz por poder te homenagear, ainda mais nesse território bonito da escrita, nesse nosso #PretaPalavra. Que muitas outras leitoras encontrem sua obra, ampliem ainda mais sua voz e aprendam com ela a potencializar as próprias vozes. Em coro somos muito mais fortes!
Oluwa Seyi é curadora no projeto PRETAPALAVRA, uma iniciativa da Capivara em parceria com Maria Carolina Casati, para divulgar e amplificar as vozes de escritoras negras.

Oluwa Seyi nasceu em São Paulo, na década de 90. É poeta, pesquisasora, critica literária e percussionista. Possui graduação e mestrado em Letras pela Universidade de São Paulo, e atualmente desenvolve pesquisa de doutorado também em Letras, na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela mesma instituição de ensino. Seus interesses de pesquisa são a produção artística de mulheres negras e a representação da experiência afrorreligiosa nas artes. Autora do livro de poesia O que há de autêntico em uma mãe inventada (Ed. Urutau, 2022), do zine estudo poético do corpo (2021, edição independente) e da plaquete digital Poemas que atravesssam meu corpo negro & fêmeo (2024, edição independente) . Tem poemas, contos e artigos publicados em revistas e antologias literárias e acadêmicas de diversos estados do país, como Cartas para Esperança (Ed. Malê, 2022) e Cadernos Negros 44 e 45 (Ed. Quilombhoje, 2022/2024). Além da escrita literária, interessa-se em tradução de poesia e escrita para áudio-visual. Atualmente é integrante do Sarau das pretas, coletivo artístico-literário gestado por mulheres negras. Escreve desde que se recorda e não consegue imaginar a si mesma longe do lugar de produtora, apreciadora e crítica de literatura.





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