Pergunto repetidamente, a cada ano, do que se faz a minha poesia, o que nela concentro, o que busco necessariamente com ela. Acontece que a experiência da escrita cada vez mais me escapa a definição, talvez por ser a escrita um processo de peregrinação constante, de migração de sentidos, de infinitos portos de chegada e partida.
Deixarei aqui, portanto, pequenos recortes de diários pessoais, onde tento ingenuamente decifrar tal jornada.
́ ́Desde que me vi ainda jovem dedicada a escrever, me vi também dedicada a vida e aos seus mistérios. Dedicada a me apropriar cada vez mais das minhas inquietações. Para mim, escrever sempre foi isso: constantemente nadar em um fluxo de consciência desafiadora enquanto tento decifrar a essência de quem eu sou e do que quero expressar. Entre boletos, conflitos políticos, paixões imponentes, feridas antigas da vida, perdas indescritíveis e tensões sociais de um brasil desmemoriado, escrevo a partir das reminiscências do meu coração, dos espólios de uma guerra que em minha cabeça perpetua, da nostalgia agridoce na graça infantil, e das poéticas cotidianas que habitam o ordinário lançando centelhas que, com potencial, são capazes de renascer também em poesia. Como uma montadora de um filme na ânsia de experimentadora, reorganizo com fascínio as tramas que se fazem em meu peito, pronta nem para errar ou acertar, e sim para
tratar os machucados, pagar as contas e repartir um pouco de beleza, simplesmente. A partir disso, reaprendo outra maneira de usar minha voz e ter coragem para abraçar minhas incertezas na medida que também aprendo a ser aprendiz, a ser gente, a errar, a amar, a partir, a ficar.
Gosto de pensar que estar diante de um papel em branco é estar em meio as encruzilhadas de Exú, um lugar de inúmeras possibilidades, uma chance para caminhar até a alma de nossos desejos, uma melodia invocando seus versos, dançando em minha cabeça, pedindo para as palavras serem organizadas.
Sento-me então para cumprir a sina, e religiosamente começo a escrever como se sentasse a mesa com minha avó e me empenhasse a separar os feijões podres dos bons. Entre a fome e o silêncio, me atento ao meu único dever, selecionar de maneira cuidadosa o que julgo substancial a alma: uma fração de cada sentimento, uma verdade, um rumor, um mistério, urdiduras cotidianas consideradas muitas das vezes banais. A inspiração e a disciplina andam de mãos dadas, e juntas fortalecem o impulso criativo que necessita tanto de liberdade para expandir quanto de estrutura para se manter.
É nesse momento que a poesia se torna quase um ritual, que uma vez consumado, se busca unicamente tocar a experiência do outro. E nesta partilha cheia de emoções e vestígios de memória dos dias, reside algo de verdadeiramente mágico...``
Posso dizer que o ato de escrever se transformou em um processo terapêutico para mim, exigindo um trabalho de escuta sensível não somente direcionada as lembranças distantes que ainda reverberam, como também para a sensações efêmeras que podemos sentir numa simples caminhada na rua. E mesmo que me perca em uma palavra, tentando encontrar a melhor maneira de expressar a sensação mais complexa, algum momento aprendo a abaixar a cabeça e desviar a rota, lidar por um instante com as partes inacabadas em mim para então viver outro dia, outra emoção, outra conversa, que com sorte me trará a peça final que faltava.
Por fim, também vejo a importância de ressaltar que não caminhei só até aqui, e jamais poderia, mesmo que quisesse. Ser feita de muitas é dádiva perante um mundo que sistematicamente tenta nos fragilizar e aniquilar nossos corpos e imaginações. Acredito que a vida, assim como a trajetória de uma escritora, também é permeada por muitas vozes que ressoam profundamente, iluminando e alimentando nossa própria criação. Me estender diante de outras perspectivas únicas, que ampliam horizontes e desafiam narrativas predominantes da negritude, me faz sentir forças de querer contar e ficcionar novas histórias. Essa intersecção de vozes é o que também torna minha trajetória na escrita mais rica e vulnerável a vida, pois é lendo outras que sou capaz de ler o mundo, entender cada vez mais o que é a força, o amor, a lealdade, o ódio, os ruídos, as inquietações dos espaços e sentimentos até então impossíveis de se preencher. Escritoras como Carolina Maria de Jesus, Cidinha da Silva, Saidiya Hartman, Elisa Lucinda, Oluwa Seyi, Stella do Patrocínio, Carina Castro, Maria Beatriz Nascimento, Conceição Evaristo, Nina Rizzi, Castiel Vitorino, Oraci Terra, Ryane Leão, Mel Duarte, entre tantas outras escreviventes, me fazem recordar o quão valoroso pode ser a existência, e como se faz importante o cultivo da literatura para enfrentar as adversidades da vida e fabular outros mundos.
A foto na gaveta de mamãe
Na gaveta de mamãe,
encontro uma fotografia minha quando mais nova
e demoro-me nela.
Ainda ouço em torno dos lábios risonhos da criança
uma roda de orações e gritos.
Minhas memórias mais exultantes da infância
não são suficientes para conter o choro.
Aproximo a fotografia do meu peito,
e gravo-lhe um último beijo
com a mesma angústia que se deixa flores
no túmulo de um falecido.
Faltam-me palavras...
e, se elas irrompem em mim,
falta-me o ar necessário para dizê-las.
Respeito o meu silêncio
e guardo a pequena foto em minha carteira,
como a imagem protetora de um santo.
Alma Aiye Dun, Línguas estranhas: para enterrar os mortos
Alma Aiye Dun é benzedeira, cineasta, produtora cultural, ceramista e escritora mato-grossense. Autora de duas obras de poesia pela editora Artefato Edições, os livros ‘A balada das cigarras’ (2021) e ‘Línguas estranhas: para enterrar os mortos’ (2023) traçam de maneira íntima discussões como gênero, sexualidade, religiosidade e saúde mental. Em meio a testemunhos pessoais, a escritora abraça a perplexidade e o encanto que é estar viva, mas denuncia as políticas de extermínio do seu povo, o racismo estrutural, a transfobia, a misoginia e a pedofilia.
Incapaz de se render ao esquecimento, a poeta reconstrói e denuncia memórias, e entre essa jornada ambígua transcrevendo situações de violência e manifestações de afeto, evidencia suas ânsias por esquecer e suas necessidades por lembrar.
No seu segundo livro, ‘Línguas estranhas: para enterrar os mortos’, ressalta que para salvar um filho do mundo ser mãe não basta. Entretanto, com uma urgência em reaprender a viver com a depressão, a autora transcende a dor em meio a epifanias, enquanto relata seus traumas, e diz:
“Vivo porque vento livre com fogo no espírito, assentamento de ferro, banho de folhas e muita desobediência para ter orgulho.”
Oluwa Seyi é curadora no projeto PRETAPALAVRA, uma iniciativa da Capivara em parceria com Maria Carolina Casati, para divulgar e amplificar as vozes de escritoras negras.
Oluwa Seyi nasceu em São Paulo, na década de 90. É poeta, pesquisasora, critica literária e percussionista. Possui graduação e mestrado em Letras pela Universidade de São Paulo, e atualmente desenvolve pesquisa de doutorado também em Letras, na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela mesma instituição de ensino. Seus interesses de pesquisa são a produção artística de mulheres negras e a representação da experiência afrorreligiosa nas artes. Autora do livro de poesia O que há de autêntico em uma mãe inventada (Ed. Urutau, 2022), do zine estudo poético do corpo (2021, edição independente) e da plaquete digital Poemas que atravesssam meu corpo negro & fêmeo (2024, edição independente) . Tem poemas, contos e artigos publicados em revistas e antologias literárias e acadêmicas de diversos estados do país, como Cartas para Esperança (Ed. Malê, 2022) e Cadernos Negros 44 e 45 (Ed. Quilombhoje, 2022/2024). Além da escrita literária, interessa-se em tradução de poesia e escrita para áudio-visual. Atualmente é integrante do Sarau das pretas, coletivo artístico-literário gestado por mulheres negras. Escreve desde que se recorda e não consegue imaginar a si mesma longe do lugar de produtora, apreciadora e crítica de literatura.
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