Eduarda Rodrigues para Capivara Cultural - Primavera Pretapalavra
- Gustavo Marcasse
- 25 de jan.
- 4 min de leitura
“Essa parede ainda vai cair de tanta letra” era a frase que meu tio sempre usava ao ver as paredes cobertas com minhas palavras. Sou a mais velha, consequentemente a primeira a ir para a escola, e o que aprendia ensinava a meus irmãos e primos, transformando paredes e portas em quadros com os tocos de giz que eu levava da escola.

A escrita e a leitura foram um refúgio desde a minha alfabetização. Asterix e Obelix, Torãozinho e a Turma do Pererê foram meus companheiros nos primeiros anos de escola. Depois, conheci a coleção Vaga-Lume, e Marcos Rey me acompanhou por muito tempo.
Eu era frequentadora assídua da biblioteca da escola e da biblioteca municipal. Competitiva como sou, amava receber o título de primeiro lugar em quantidade de livros lidos por mês. Em pouco tempo, devorei os clássicos nacionais e internacionais. A leitura era uma forma de viajar sem precisar sair de Malacacheta. Sempre tive uma imaginação muito fértil. Eu era a pessoa que contava causos no recreio para uma roda de amigos, que criava brincadeiras novas. Mas foi só na adolescência que comecei a passar essas criações para o papel. Escrevia sobre o que via, ouvia e também sobre aquilo que imaginava.
A partir de 2016, comecei a ter mais acesso à literatura de autoria negra. Foi o ano em que li pela primeira vez Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, e isso mudou totalmente minha percepção sobre como a literatura poderia ser feita. Em 2020, por indicação de uma coordenadora de um projeto de que eu participava, enviei uma carta para Carolina Maria de Jesus, concorrendo a uma seleção feita pela FLUP para escritoras negras de todo o país. Minha carta foi selecionada e, após um processo formativo, resultou na minha primeira publicação na coletânea Carolinas: a nova geração de escritoras negras.
A partir daí, passei a ver que era possível. Em 2023, publiquei meu primeiro livro de contos, Pedras de Malacacheta, que reúne histórias com diversos narradores que transformam episódios do cotidiano em grandes eventos. Esse livro foi muito pautado naquilo que vivi ou vi viverem.

Já em 2024, lancei meu segundo livro, uma experiência totalmente diferente de escrita. Trata-se de uma ficção baseada em um surto psicorreligioso que aconteceu em Minas Gerais nos anos 1950. Para escrevê-lo, pesquisei jornais e estudos acadêmicos da época dos fatos. Muitas vezes eu queria parar de escrever, mas as palavras e as histórias vinham como se tivessem vontade própria, como se fosse alguém sussurrando ao meu ouvido. Quando eu era criança, minha mãe fazia todo mundo se benzer quando escutava a Coã cantando. Era um sinal de mau agouro—com certeza, alguém de perto iria morrer. Em 2005, fui morar por um tempo com meu tio em Nova Módica (MG) e, na biblioteca da cidade, encontrei o livro Contos Amazônicos, do Inglês de Sousa. O conto “Acauã” me assombrou de um jeito que eu não queria nem dormir sozinha. Esse conto me acompanhou por muito tempo. Em 2019, um professor do curso de Letras da USP deixou o trabalho final com tema livre, e resolvi analisá-lo para ver se ele saía um pouco da minha cabeça. Não resolveu. No período de escrita do livro, senti que deveria tentar mais uma vez me libertar desse medo de infância. Ao dividir com minha mãe que estava colocando um pássaro como parte da narrativa e que escolheria o Acauã, ela respondeu: “Ah, aqui nós chamamos de Coã.” Foi só aí que me toquei que meu medo de adolescência era o mesmo da infância.
Durante o processo de escrita, eu, que sou muito medrosa, ficava assustada com o que estava escrevendo e me forçava a parar, indo assistir Steven Universe para acalmar o corpo. Mas essa história do Demônio do Catulé vivia no meu imaginário. Cresci ouvindo os mais velhos contando os casos dos “crentes” que comiam crianças e sentia que precisava escrever essa história. Sinto como se fosse um presente que me foi dado.
Hoje, olhando para minha escrita, vejo um reflexo de todas as minhas leituras, desde as de menina até as de mulher feita. Se fosse para ser intencional, gostaria que minha escrita refletisse a de Conceição Evaristo, Octavia Butler e Toni Morrison (ainda não achei nada mais bonito que Amada - Beloved). Pode parecer estranho, já que são escritas totalmente diferentes, mas o que elas têm em comum é o encanto que me deixam, como se eu voltasse a ser criança e estivesse lendo pela primeira vez.
Sinto que ainda não sou a escritora que quero ser, mas estou a caminho…
Eduarda Rodrigues nasceu em Malacacheta, MG, nos anos 90. É bacharel e licenciada em Português-Francês pela USP e pesquisadora em nível de mestrado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo, na linha de Estudos Comparatistas da Literatura, com especialidade em Teorias Críticas da Raça e Literatura Negra.
Tem textos de ficção publicados em antologias pelas editoras Bazar do Tempo, Pangeia e Amavisse (Patuá). Seu primeiro livro de contos, Pedras de Malacacheta, foi publicado em 2023 pela Editora Mondru. Em 2024, lançou Catulé: o demônio está aqui pelo Grupo Editorial Caravana.
Oluwa Seyi é curadora no projeto PRETAPALAVRA, uma iniciativa da Capivara em parceria com Maria Carolina Casati, para divulgar e amplificar as vozes de escritoras negras.
Oluwa Seyi nasceu em São Paulo, na década de 90. É poeta, pesquisasora, critica literária e percussionista. Possui graduação e mestrado em Letras pela Universidade de São Paulo, e atualmente desenvolve pesquisa de doutorado também em Letras, na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela mesma instituição de ensino. Seus interesses de pesquisa são a produção artística de mulheres negras e a representação da experiência afrorreligiosa nas artes. Autora do livro de poesia O que há de autêntico em uma mãe inventada (Ed. Urutau, 2022), do zine estudo poético do corpo (2021, edição independente) e da plaquete digital Poemas que atravesssam meu corpo negro & fêmeo (2024, edição independente) . Tem poemas, contos e artigos publicados em revistas e antologias literárias e acadêmicas de diversos estados do país, como Cartas para Esperança (Ed. Malê, 2022) e Cadernos Negros 44 e 45 (Ed. Quilombhoje, 2022/2024). Além da escrita literária, interessa-se em tradução de poesia e escrita para áudio-visual. Atualmente é integrante do Sarau das pretas, coletivo artístico-literário gestado por mulheres negras. Escreve desde que se recorda e não consegue imaginar a si mesma longe do lugar de produtora, apreciadora e crítica de literatura.

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