Pode ser que a escrita nasça na ponta da minha língua como uma afta incômoda. Ou, na minha mão direita, seja uma verruga hereditária. Não me lembro exatamente quando entendi que escrever sanava as minhas dores. Contudo, em algum momento notei que as palavras esquisitas que minha avó falava não saíam da minha cabeça. Uma dessas palavras é “sestro”. Tenho um cacoete de ansiedade desde muito pequena e dona Delita sempre corrigia a minha expressão atormentada. “Larga esse sestro feio, menina.” Eu ficava irritada pela bronca, mais ainda por não compreender exatamente o sentido da frase. Decorei a palavra com tamanha força que a repetia ao léu, e só adulta foi que pude finalmente entendê-la.

Fiquei obcecada pelo exercício de observação aprendido enquanto eu ainda era uma criança e minha avó analfabeta, um enigma. Foi nessa época que constatei que as palavras das pessoas alimentavam as minhas, numa cadeia infinita. Ler, escutar, observar o que as pessoas expressavam era trampolim para a tradução de minhas próprias emoções e criações. Então, minha busca se tornou conhecer os mundos e as vozes de autoras parecidas comigo.
A leitura, para quem escreve, é um observatório. Grandes mestras que encontrei pelo caminho ressoaram as palavras de minha avó e ampliaram o meu repertório. Outras foram um encontro absoluto comigo mesma e chegaram a abrir portais os quais adentrei sem jamais poder retornar. Mas somente através dessas revelações foi que minha literatura pôde se construir. Em um eterno exercício de compreensão da minúcia da palavra, testemunhei o amor que sinto pela figura encantada de minha avó fazendo com que o “sestro” nunca abandone o meu rosto.
No momento em que li Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, fui imediatamente transportada para uma cena em que minha avó contava como foi a vinda de suas filhas mais velhas à grande São Paulo. A leitura me levou a escrever a cena, debulhar a cena, refazê-la com diferentes luzes em Pequenas ficções de memória, meu primeiro livro, publicado pela Editora Patuá em 2018. Com Ponciá, vi brotar a árvore, a flor e o fruto no mesmo piscar de olhos. Isso, com certeza, depõe contra pressupostos científicos.
Ler o Quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus foi um assombro. Redescobri a brutalidade da cidade de São Paulo, a minha própria brutalidade e pude imaginar o que seria de minha família se minhas mais velhas tivessem aprendido a ler. Quantas gerações de empregadas domésticas a menos nós teríamos, sendo eu a primeira geração de mulheres a seguir outra profissão? Quantos sonhos foram dizimados dando lugar a pratos de comida? O encontro com o espelho que a literatura pode ser é aterrador e, por isso mesmo, maravilhoso. Posso dizer que me encontrei com deus quando Carolina escreveu seu primeiro diário. E eu nem estava presente. Por isso, escrevi “Usucapião”, poema de minha última publicação, Água salobra (Ed. Primata, 2024).
Geni Guimarães, em Leite do Peito, me conduziu pela mão à visitação de minha criança. Com ela, relembrei minhas professoras da educação infantil e fiz minha autoavaliação docente. Quantas pontes eu posso erguer entre a criança violentada e a criança que brilha ao sol?, era o que me perguntava ininterruptamente. Poemas e poemas me resgataram da penumbra do racismo escolar e me tornaram a profissional que sou hoje - a que sempre quer construir um coletivo negro com os estudantes, aonde quer que vá.
Romancistas, cronistas, contistas e poetas negras me ensinam a colocar os pingos nos is daquilo que produzo. E a minha produção, naturalmente, é minha ferramenta maior de existência. E escrevo naturalmente pelo apelo semântico: ao dizê-lo, conto a você, leitor(a/e), que ser escritora e poeta é uma condição inata a este corpo em que resido. Eu nasci com essa vocação e tive acesso aos saberes que sistematizaram a maneira com que me apresento ao mundo. Sendo alfabetizada, eu pude eternizar o que sinto, penso, elaboro. Mas a arte, em suas diversas formas, está em mim desde a minha antepassada original.
Mulheres como Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Geni Guimarães, Miriam Alves, Cidinha da Silva, Dalva Maria Soares, Neide Almeida, Lilia Guerra, Marli Aguiar, Elizandra Souza, Tula Pilar, Karine Bassi, Lesley Nneka Arimah, Oluwa Seyi (minha amiga generosa) descendem desse mesmo tronco em que eu, tímida mas incansável, fui enxertada contra toda probabilidade. Louvo suas canetas, suas vozes, seus silêncios. Seus livros me salvam a vida e me permitem ser o que estou sendo, desde que conheci as palavras.
Em perene vir a ser, leio-escrevo mais uma vez. E não me basta.
Zainne Lima da Silva (1994) é de Taboão da Serra, zona metropolitana de São Paulo. Bacharela e licenciada em Letras pela FFLCH-USP e estudante de Pedagogia. Atua como professora de produção de texto no ensino básico e é pesquisadora de estudos raciais. Autora de Pequenas ficções de memória (Ed. Patuá, 2018), Canções para desacordar os homens (1ª ed. independente, 2020 / 2ª ed. Ed. Popular Venas Abiertas, 2023), Pedra sobre pedra (Ed. Popular Venas Abiertas, 2020) e Água salobra (Ed. Primata, 2024).
Oluwa Seyi é curadora no projeto PRETAPALAVRA, uma iniciativa da Capivara em parceria com Maria Carolina Casati, para divulgar e amplificar as vozes de escritoras negras.
Oluwa Seyi nasceu em São Paulo, na década de 90. É poeta, pesquisasora, critica literária e percussionista. Possui graduação e mestrado em Letras pela Universidade de São Paulo, e atualmente desenvolve pesquisa de doutorado também em Letras, na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela mesma instituição de ensino. Seus interesses de pesquisa são a produção artística de mulheres negras e a representação da experiência afrorreligiosa nas artes. Autora do livro de poesia O que há de autêntico em uma mãe inventada (Ed. Urutau, 2022), do zine estudo poético do corpo (2021, edição independente) e da plaquete digital Poemas que atravesssam meu corpo negro & fêmeo (2024, edição independente) . Tem poemas, contos e artigos publicados em revistas e antologias literárias e acadêmicas de diversos estados do país, como Cartas para Esperança (Ed. Malê, 2022) e Cadernos Negros 44 e 45 (Ed. Quilombhoje, 2022/2024). Além da escrita literária, interessa-se em tradução de poesia e escrita para áudio-visual. Atualmente é integrante do Sarau das pretas, coletivo artístico-literário gestado por mulheres negras. Escreve desde que se recorda e não consegue imaginar a si mesma longe do lugar de produtora, apreciadora e crítica de literatura.

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