Após dois poetas estrangeiros e bastante canônicos – Pier Paolo Pasolini e W. H. Auden, cujas postagens podem ser lidas neste site –, minha terceira indicação para a #poesiaqueer é um jovem brasileiro, Matheus Guménin Barreto (1992).

Cuiabano de origem e paulistano por vocação, Matheus é, a meu ver, um dos poetas mais talentosos de sua (minha também) geração. Dono de uma obra já desdobrada em numerosos volumes de poemas (entre os quais, A máquina de carregar nadas, 7Letras, 2017; Mesmo que seja noite, Corsário-Satã, 2020; História natural da febre, Corsário-Satã, 2022), realizou também, e de maneira nada fortuita, estudos e traduções de autores de língua alemã como Ingeborg Bachmann, Paul Celan e Bertolt Brecht.
Seria de uma obviedade ululante apenas afirmar que Matheus Guménin Barreto é um poeta queer, homoerótico ou qualquer outra denominação desse tipo. Não se trata somente disso, mas do fato de que o autor faz da vertente homoerótica um dos motores de sua poética, que reivindica de modo tão insistente quanto necessário um lugar nessa tradição que passa, por exemplo, por W. H. Auden, mas também, no Brasil, por Roberto Piva – não à toa, os dois poetas citados (e, no caso de Auden, traduzido pelo próprio Matheus) nas epígrafes da segunda parte de História natural da febre: “Das alegrias: manual do homem com homem” (p. 37). Repetitivas no melhor sentido – isto é, como imagens que informam os poemas e, com eles, se transformam –, as metáforas do motor, da máquina, do manual, todas elas mais ou menos comunicantes, aludem à oficina do poeta e suas mãos. Mãos que escrevem e mãos que tocam, já que “[...] o homem tem o homem nas mãos/ e as mãos seguem seu cego itinerário provisório/ apagado sempre pelo toque próximo e sombra e esquecimento – apagado como a praia e o vento que a inaugura” (seção “Um corpo incendiado: este”, em Mesmo que seja noite, p. 29).
Na poesia de Matheus Guménin Barreto, o natural, o manual e o maquinal parecem caminhar, com o perdão do trocadilho, de mãos dadas. Como na imagem da “máquina de emocionar” (“machine à émouvoir”), tomada por João Cabral de Melo Neto a Le Corbusier, o contato com os mecanismos internos do poema, com sua oficina, está ao alcance das mãos – mas não se trata tanto, aqui, da mão do “engenheiro”, como no livro de Cabral, mas de uma mão que busca medir a temperatura do mundo (como diz Pedro Eiras no texto de orelha de História natural da febre) com seu próprio pulso. E, nele, descobre o pulsar inapelável do tempo, o compasso do dia e das noites, a textura da pele – e do sexo – do amado.
Longe de uma mera fenomenologia do tato, essa poesia funde a dimensão física da descoberta ao rés-do-chão (a poesia como “luz do chão”, na bela imagem de Ferreira Gullar, outro dos poetas favoritos de Barreto) aos desvãos metafísicos de uma constante investigação do mundo em suas contradições sutis ou explícitas. E é nesse exercício de interrogar o mundo, de aferir seu pulso e auscultar seu coração, que o homoerotismo encontra seu lugar privilegiado, como uma espécie de paradigma do corpo-a-corpo (ou deveríamos dizer, com Gullar, da Luta corporal) com a realidade: “A mão que arde no arbusto/é a mesma/que arde no sexo do amado e a mesma/que arde na areia e na espuma.”, do poema “Os trabalhos e as noites”, reproduzido abaixo. Tal é a sistematicidade dessa postura em Matheus Guménin Barreto, que os três poemas por mim escolhidos para esta breve introdução à sua poesia, embora de três livros distintos, talvez pareçam uma série. Uma série que mostra alguns de seus pulsos e convida ao prazer da leitura:
Os trabalhos e as noites
I.
A mão que arde no arbusto
é a mesma
que arde no sexo do amado e a mesma
que arde na areia e na espuma.
A mão que arde no sexo do amado
é a mesma que faz a cama com vagar
entre paredes altas
mais alto o ardor branco da cama feita, apaziguada.
A mão que arde no branco da cama
é a mesma que limpa o pus e a mesma posta contra a luz de relâmpagos
à noite
a mesma que abre o pão é a mão a mesma.
Em cada coisa o vagar, em cada coisa o furor mudo.
II.
Estar na mão como a água que se lhe correu
na infância
estar no pulso como o calor de mãos amorosas
na boca estar como o fruto de outra estação
como o sexo do amado estar na boca
como seu sumo amargo e solar.
(História natural da febre, p. 43)
Um corpo incendiado: este
o amado que toca os pulsos mornos
de seu amado
e o braço e as mãos
tremulargênteas
e o rosto toca e o sexo
quente e afiado
o amado que toca os pulsos mornos
de seu amado
e sabe de repente o que é um ensolarado riso e
a noite antiquíssima que o olha
de volta
[...]
(seção “Um corpo incendiado: este”, Mesmo que seja noite, p. 28)
Ritornello
onde mergulho minhas mãos cansadas
- no dia morno do teu amor
(A máquina de carregar nadas, p. 92)
HENRIQUE PROVINZANO AMARAL é poeta, tradutor e pesquisador. Graduado, mestre e doutorando em Letras pela USP, dedica-se ao estudo e à tradução de escritores.as do Caribe francófono, especialmente do martinicano Édouard Glissant. Como tradutor, publicou, além de ensaios desse autor, os livros Jan Mapou Jan (com Vanderley Mendonça, Selo Demônio Negro, 2019), miniantologia do poeta haitiano Jan Mapou; a coletânea Estilhaços – antologia de poesia haitiana contemporânea (Selo Demônio Negro, 2020), que também organizou; e o livro de ensaios Queer Zones 1 (com Thiago Mattos, Crocodilo/n-1 edições, 2022), de Sam Bourcier. Como poeta, Henrique é autor do livro Quatro cantos (Patuá, 2020) e de poemas publicados esparsamente em veículos como Ruído Manifesto, Posfácio, Mallarmargens. Participou como tradutor convidado na FLIMA – Festa Literária da Mantiqueira, em 2018, e no Festival Vo-Vf, em Gif-sur-Yvette, França, em 2023.

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