A segunda indicação desta curadoria #poesiaqueer, seguindo numa linha mais canônica encabeçada por Pier Paolo Pasolini, é o poeta britânico naturalizado estadunidense Wystan Hugh Auden (1907-1973), ou W. H. Auden, ou somente Auden. Como todo grande poeta, Auden é o criador de uma poética ímpar em que se misturam uma vasta erudição, certa obsessão por temas e formas clássicos ou neoclássicos e uma dicção modernista, sem que para tanto precise replicar experimentalismos de vanguarda já bastante codificados quando começa a publicar, nos anos 1920.
Homossexual assumido, W. H. Auden teve vários companheiros ao longo de sua vida não tão longa – o relacionamento mais longevo terá sido, provavelmente, com Chester Kallman, também parceiro de criação em libretos de ópera (outro dos gêneros que Auden mais praticou, assim como o teatro, o ensaio e a poesia). Longe de uma mera curiosidade biográfica, a relação do poeta com sua homossexualidade – algo que oscila entre a reflexão irônica, a reivindicação em meio aos temas e formas quase solenes da poesia e uma espécie de clin d’oeil para sua própria história sentimental – transparece em numerosos poemas, configurando uma de suas tônicas. Quer na escolha de figuras masculinas homenageadas em sua poesia, como Aquiles (“The shield of Achilles”, “O escudo de Aquiles” na tradução de José Paulo Paes), Arthur Rimbaud (“Rimbaud”) e Herman Melville (“Herman Melville”), todas elas com uma relação no mínimo controversa com a homossexualidade. Quer, ainda, na elaboração de um tom entre o elevado e o erótico para falar dos encontros e desencontros sexuais, como no “Poem” (“Poema”, segundo a tradução de Nelson Ascher, abaixo). Essa construção de linguagem permite que o fato de se tratar de um casal homoafetivo ocupe e não ocupe, de maneira ambígua, o centro do poema, já que há uma atmosfera densa, sombria e melancólica que vai além da reivindicação do amor homossexual como tema poético. Frequentemente, “A questão” (ecoando o poema “The question” tal como traduzido por João Moura Jr., também reproduzido abaixo) está em desconstruir uma visão irrefletidamente heterocentrada da poesia e da vida, para reler a tradição a partir de um ponto de vista outro, erudito e irônico, como apenas Auden saberia fazer.
Nesse sentido, seria impossível não mencionar o célebre “Funeral blues” (“Blues do funeral”, na tradução ainda inédita de Pedro Köberle, aqui reproduzida), segmento do poema maior “Two songs for Hedli Anderson”. De maneira ousada mas sutil, Auden retoma nesse texto a musicalidade do blues, compondo uma song que também lembra as canções teatrais de Bertolt Brecht e Kurt Weill, ao mesmo tempo em que relê a tradição elegíaca da antiguidade clássica – tudo isso se reportando a um “he” que por vezes se dissolve nas traduções em português (não é o caso da tradução aqui escolhida, que promete uma boa leva de novas traduções do poeta). Não à toa, o poema é uma espécie de masterpiece que se tornou quase pop, aparecendo em diversas antologias poéticas de Auden ou mesmo de caráter genérico (como a Poesia alheia, de Nelson Ascher), mas também no filme “Quatro casamentos e um funeral” (“Four Weddings and a Funeral”, 1994).
Aí vão minhas sugestões de leitura, sempre com a intenção de abrir espaço para outros debates e pontos de vista acerca do poeta:
Poema
Querido, finda a noite,
paira no dia o sonho
que nos levou a um quarto
sombrio, tão alto quanto
uma estação central,
e, numa dentre as camas
no escuro aglomeradas,
deitamo-nos, num canto.
A arfar, sem despertarmos
relógio algum, beijamo-nos,
foi bom quanto fizeste,
nem reparei nos outros
que, olhando-nos hostis,
sentavam-se nas camas
aos pares, num abraço
inerte e meio triste.
Que verme de remorso,
que dúvida maligna
me assolam, pois fizeste
o que eu nunca esperara,
contando-me impassível
teu novo amor de agora
e, ao ver-me indesejado,
eu fui, submisso, embora?
Poem
Dear, though the night is gone,
The dream still haunts to-day
That brought us to a room,
Cavernous, lofty as
A railway terminus,
And crowded in that gloom
Were beds, and we in one
In a far corner lay.
Our whisper woke no clocks,
We kissed and I was glad
At everything you did,
Indifferent to those
Who sat with hostile eyes
In pairs on every bed,
Arms round each other’s necks,
Inert and vaguely sad.
O but what worm of guilt
Or what malignant doubt
Am I the victim of;
That you then, unabashed,
Did what I never wished,
Confessed another love;
And I, submissive, felt
Unwanted and went out?
Tradução de Nelson Ascher. Poesia alheia, Rio de Janeiro: Imago, 1998, p. 130-131.
Nota: esse poema aparece ligeiramente modificado e com o título “A dream” na edição da
Selected poetry of W. H. Auden, Nova York, The Modern Library, 1958.
A questão
Todos nós acreditamos
ter nascido de uma virgem
(pois quem pode imaginar
os seus pais a copular?)
e casos há conhecidos
de Virgens que engravidaram.
Mas permanece a Questão:
de onde Cristo recebeu
aquele cromossomo extra?
The question
All of us believe
we were born of a virgin
(for who can imagine
his parents copulating?),
and cases are known
of pregnant Virgins.
But the Question remains:
from where did the Christ get
that extra chromosome?
Tradução de João Moura Jr. W. H. Auden, Poemas, São Paulo, Companhia das Letras,
2013, p. 220-221, Org. João Moura Jr., Trad. José Paulo Paes e João Moura Jr.
Blues do funeral
Parem os ponteiros, calem o telefone,
Que o cão com seu osso ladre sem volume,
Aquietem os pianos e com tambor abafado
Tragam o caixão e o cortejo enlutado.
Que os aviões que gemem e saem do aeroporto
Risquem no céu a mensagem “Ele está morto”,
Ponham laços de crepe no branco pombo público
E luvas de algodão preto nos guardas de trânsito.
Ele era meu Leste, Oeste, meu Norte e meu Sul,
Minhas semanas nubladas e dias de céu azul,
Minha tarde, minha noite, minha fala, meu canto
Errei ao pensar que o amor durasse tanto.
Sem mais estrelas: apaguem uma a uma,
Desmantelem o sol e empacotem a lua,
Despejem o oceano e varram a serragem,
Que nada agora pode dar em vantagem.
Funeral blues
Stop all the clocks, cut of the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.
Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He is dead,
Put crêpe bows round the white neck of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.
He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last forever: I was wrong.
The stars are not wanted now: put out every one;
Pack up the moon and dismantle the sun.
Pour away the ocean and sweep up the wood.
For nothing now can ever come to any good.
(tradução inédita de Pedro Köberle, gentilmente cedida pelo tradutor).
HENRIQUE PROVINZANO AMARAL é poeta, tradutor e pesquisador. Graduado, mestre e doutorando em Letras pela USP, dedica-se ao estudo e à tradução de escritores.as do Caribe francófono, especialmente do martinicano Édouard Glissant. Como tradutor, publicou, além de ensaios desse autor, os livros Jan Mapou Jan (com Vanderley Mendonça, Selo Demônio Negro, 2019), miniantologia do poeta haitiano Jan Mapou; a coletânea Estilhaços – antologia de poesia haitiana contemporânea (Selo Demônio Negro, 2020), que também organizou; e o livro de ensaios Queer Zones 1 (com Thiago Mattos, Crocodilo/n-1 edições, 2022), de Sam Bourcier. Como poeta, Henrique é autor do livro Quatro cantos (Patuá, 2020) e de poemas publicados esparsamente em veículos como Ruído Manifesto, Posfácio, Mallarmargens. Participou como tradutor convidado na FLIMA – Festa Literária da Mantiqueira, em 2018, e no Festival Vo-Vf, em Gif-sur-Yvette, França, em 2023.
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