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92 vezes Augusto de Campos, por Dirceu Villa

Nossa época aos poucos se convenceu de que o tempo passa com uma velocidade que nos dá nada mais do que um vislumbre, borrado e confuso, daquilo que é a vida, e que se precisa agarrar em termos financeiros, cercar de proteções. Isso nos faz ansiosos, tira a graça da nossa sintaxe, reduz nossa atenção ao detalhe, ao registro preciso das sensações. Foi Augusto de Campos quem traduziu o Rilke que diria, no vigésimo segundo soneto a Orfeu, da primeira parte:


Jovem, não há virtude

na velocidade

e no voo, aonde for.

Tudo é quietude:

escuro e claridade,

livro e flor.


“Blume und Buch”. Rilke não é uma das referências fundantes da poesia concreta, mas foi lá, entre outros lugares, que Augusto de Campos, como o grande artesão do verso, encontrou a substância para uma verdade intensa em seu esplêndido português. Seria árduo localizar, de modo pontual, a importância do trabalho de Campos para mim: simultaneamente me ocorrem tanto a ousadia do poeta de vanguarda, que estabeleceu um ponto de fuga brasileiro em João Cabral de Melo Neto, abrigando no obstinado não tantos sims, além de, claro, reafirmar o lugar de destaque de Oswald de Andrade e de Pagu; como também a dignidade superior do poeta que jamais se furtou de fixar posição política do lado certo da História, desde antes de “Greve”, de 1962, e mesmo quando, em 2016, lhe tivesse sido mais simples e tranquilo fazer como a maioria, e apenas calar diante de um novo golpe de Estado que nos mergulharia no neofascismo por anos; ou o tradutor que, com seu irmão siamesmo Haroldo de Campos, e Décio Pignatari, multiplicou as possibilidades desse artesanato inventivo na poesia alheia, que restitui ao mesmo tempo a presença do poema de origem quase como num duplo espectral.


Devo a Augusto de Campos (e a Haroldo e Luiz Costa Lima) o Sousândrade revisto, que me despertou para a poesia quando era ainda um adolescente, e assim também o igualmente revisto Pedro Kilkerry, quando esses dois poetas singulares do Brasil me propuseram a hipótese que depois persegui, a de que o cânone de língua portuguesa exigia de imediato uma revisão – ou várias. Se o tino crítico poundiano - que norteou tanto as (re)descobertas brasileiras (para o choque da crítica no país), quanto o afiado paideuma cosmopolita e desafiador - lhes deu uma fibra polêmica, esse mesmo tino nos deu também o variado tesouro tradutório, que trouxeram das sombras da convenção para a luz da materialidade poética.


Materialidade, aliás, que a própria prática de Augusto exemplifica, sempre fiel aos princípios que se pôs, no limite entre o poeta e o artista visual, onde um e outro se tornam o duplo operativo que tem em Mallarmé e cummings, como também no método ideogrâmico, um mapa de concentração verbal: essa concentração, ou o aspecto atômico da poesia, ou ainda mesmo o sentido verbivocovisual (como proporia com James Joyce), fincou um princípio de rigor na composição que todas as gerações seguintes tiveram de manter à vista. Foi também a materialidade sígnica, e de poema-objeto, o que explorou na justamente célebre colaboração com Julio Plaza nos Poemóbiles de 1974, ou nas suas intraduções, ou no cinético, explosivo e digital “poema-bomba”, ou no engenhoso artefato sonoro que é “cidade city cité”.


E o som é ainda outro domínio de grande importância para Augusto de Campos: crítico de música do tipo mais raro que há, aquele que enfrenta os grandes desafios sonoros, como os da Klangfarbenmelodie de Webern, das estruturas intrincadas de Luciano Berio e Luigi Nono, da eletrônica de Karlheinz Stockhausen, entre muitos outros. E por isso é importante notar que a ensaística de Augusto, se se torna mais técnica em música, é ainda assim sempre um espaço de difusão, acessível ao interessado e à interessada: diferente daqueles que ofuscam quem lê com a cortina de fumaça de uma programática impenetrabilidade, ou da abstração teórica, sua escrita crítica é sempre nutridora de impulso.


Essa “nutrição de impulso” que seus ensaios revolucionários em poesia e música continuam estimulando são complementados, e talvez superados, pelo trabalho de tradução: se Augusto, como Haroldo e Décio Pignatari, trouxeram de Ezra Pound práticas e ideias luminosas sobre o assunto, transformaram essas práticas e ideias em algo novíssimo, que combina a inventividade da tradução poundiana a um rigor formal e semiótico que não tem comparação com nenhum outro tipo de tradução de poesia que eu conheça, é um patrimônio brasileiro e de concepção da poesia concreta, que nos trouxe em tradução primorosa James Joyce, Ezra Pound, a poesia russa moderna (na colaboração histórica com Boris Schnaiderman), e. e. cummings, John Donne, a obra toda de Arnaut Daniel e uma antologia de mais provençais, poemas de Guido Cavalcanti, Dante Alighieri, Tristan Corbière, Jules Laforgue, Arthur Rimbaud, poesia chinesa antiga, Quirinus Kuhlman, e um vasto etc que está sempre se ampliando.


E a contribuição das traduções de Augusto de Campos é bem mais do que mera contribuição: é quase a constituição de um cânone, com exemplos modelares de como se fazer tradução de poesia resultando efetivamente num poema na língua de chegada, e que tem educado gerações de tradutoras e tradutores de poesia. Como sempre digo a meus alunos e alunas de tradução na Casa Guilherme de Almeida, o poema que temos em português do bilhete de suicídio de Serguei Iessiênin é, em si, um dos melhores poemas da língua portuguesa:


Até logo, até logo, companheiro.

Guardo-te no meu peito e te asseguro:

O nosso afastamento passageiro

É sinal de um encontro no futuro.

Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.

Não faças um sobrolho pensativo.

Se morrer, nesta vida, não é novo,

Tampouco há novidade em estar vivo.


E de uma tradução de Augusto de Campos para poema de John Donne, e da polêmica que a envolveu, Paulo Henriques Britto tirou um artigo que a toma como base para estabelecer critérios de qualidade em tradução de poesia; se tomamos a tradução de Augusto para a tradução de Pound da elegia do navegante (originalmente em anglo-saxão), temos um modelo para como traduzir, em português, o estilo aliterativo, que sequer é simples em inglês. Os sonetos de Mallarmé, sintaticamente audaciosos e complexos (ele mesmo chamava-se syntaxier) receberam de Augusto de Campos traduções igualmente exemplares.


E assim por diante.


Sua poesia, o núcleo autoral de sua obra, recebeu recentemente, em 2019, uma antologia-tradução para o alemão de ninguém menos que Simone Homem de Mello: é um livro bilíngue que cumpre uma função inovadora, porque, ao mesmo tempo em que traduz sua poesia, serve de retrospecto, de antologia, à sua obra mesmo para nós no Brasil. E relendo a poesia de Augusto naquela antologia flagrei, para mim mesmo, não só a absoluta singularidade de sua obra (e em qualquer parte do mundo), mas a sua permanente inquietação, a variedade chocante de sua escrita de poema a poema, que no entanto reafirma sempre a personalidade marcante de seu estilo, de suas invenções.


Estamos, portanto, celebrando hoje um poeta e uma pessoa cujo universo poético é precisamente isso: um universo. Entrar em sua obra, por onde se quiser entrar, mostra de imediato sua força centrípeta, o seu eixo fixo, e ao mesmo tempo a mais expansiva força centrífuga, sua magnética irradiação. Por isso, dizer hoje 92 vezes Augusto de Campos talvez possa simbolicamente representar essa multiplicidade e essa singularidade.


Parabéns, Augusto.




Dirceu Villa




Fala realizada no evento PoetaMenos 92, uma homenagem realizada em celebração aos 92 anos do poeta Augusto de Campos. Parceria da Capivara Cultural e editora Laranja Original.






Dirceu Villa é poeta, tradutor e ensaísta, autor de 6 livros publicados de poesia, com doutorado em Literaturas de Língua Inglesa pela USP e pós-doutorado em Literatura Brasileira, também pela USP. Colaborou com periódicos estrangeiros e escreveu apresentações para obras de diversos autores contemporâneos. Foi convidado para o PoesieFestival de Berlim em 2012 e em 2015 foi escolhido para residência literária em Norwich e Londres, promovida pelo British Council, a FLIP e o Writers’ Centre Norwich. Sua poesia já foi traduzida para o espanhol, o inglês, o francês, o italiano e o alemão, publicada em antologias e revistas especializadas. Há sete anos é professor da Oficina de Tradução Poética da Casa Guilherme de Almeida (Centro de Estudos de Tradução Literária), e professor do Laboratório de Poemas há três anos n' A Capivara.


*Para conhecer mais detalhes sobre o Laboratório de Poemas, acesse: www.acapivaracultural.com.br/laboratoriodepoemas





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