Começar a #pretapalavra com Toni Morrison é uma honra e um prazer. Desde meu primeiro contato com a autora, na graduação – nos longínquos primórdios dos anos 2000 –, seu texto me arrebatou de tal forma que O Olho Mais Azul rapidamente se tornou meu-livro-preferido-da-vida.
Agora, mais velha e com tantas outras leituras na bagagem, a história de Pecola continua a ocupar o lugar mais prestigioso do meu coração, mas é tudo o que Toni representa que me faz querer ler e estudá-la ainda mais.
No documentário Partes de Mim (The Pieces I am, Globoplay), a autora diz que começou a escrever porque queria se ver nos livros publicados. Mais que isso, gostaria de escrever para negrxs, para aqueles para os quais não precisasse explicar nada. “Lutei a vida inteira para que meus livros não trouxessem o ponto de vista da branquitude”, ela nos diz.
Assim, iniciar esse projeto que nos é tão caro com o prefácio do Black Book, no qual Toni traz “um panorama do que é ser negrx na América”, me pareceu o caminho mais natural. Somos nós falando sobre nós mesmxs. Somos nós que nos apresentamos e definimos. E, assim como tudo nessa cultura, ainda que seja Toni falando sobre os EUA, é Conceição falando sobre o Brasil.
Porque a escrevivência que nos une é individual, porque coletiva; e é coletiva, porque política.
Salve, quilombo!
Maria Carolina Casati
curadora da #pretapalavra
Prefácio
O Livro Negro, 1973
Toni Morrison
Eu sou o Livro Negro.
Entre minha parte superior e minha parte inferior, minha direita e minha
esquerda, eu mantenho o que vi, o que fiz e o que pensei.
Sou tudo o que odiei: trabalho sem colheita; morte sem honra;
vida sem terra ou lei. Eu sou uma mulher negra segurando uma criança branca nos
braços, cantando para seu próprio bebê deitado sozinho na grama.
Eu sou todas as maneiras nas quais falhei:
eu sou o negro senhor de escravos, o comprador do Creme Clareador
Golden Peacock e do Branqueador de Pele do Dr. Palmer, o malandro apostador; eu sou a
minha própria piada de negro.
Eu sou todas as maneiras pelas quais sobrevivi:
eu sou tun-mush, bolo de mel cozido na enxada; eu sou
quatorze jóqueis negros vencendo o Kentucky Derby. Eu sou o criador de
centenas de invenções patenteadas; eu sou o pirata Lafitte e Marie Laveau.
Sou Bessie Smith vencendo um concurso de patinação; eu sou colchas e ferragens,
carpintaria e rendas finas. Eu sou as guerras que lutei, o ouro que minerei,
os cavalos que quebrei, as trilhas que abri.
Eu sou tudo o que vi:
o jornal The New York Caucasian, o
escravo Gordon, com cicatrizes nas costas, os Draft Riots, músicas obscuras e mercadores
distorcendo meu rosto para vender linha, sabonete, graxa de sapato, coco.
E eu sou todas as coisas que
eu sempre amei: vinho artesanal, batismos legais em
águas silenciosas, livros de interpretação de sonhos e jogos de números. Eu sou o meu próprio
som, minha voz cantando "Sangaree". Eu sou gritos e blues, ragtime e música evangelista. Eu
sou mojo, vodu e brincos de ouro.
Não estou completa aqui; tem muito mais,
mas não há mais tempo e não há mais espaço. . . e tenho viagens a fazer,
navios para nomear, e tripulações.
Tradução de Maria Carolina Casati
Preface
The Black Book, 1973
Toni Morrison
I am The Black Book.
Between my top and my bottom, my right and my
left, I hold what I have seen, what I have done, and what I have thought.
I am everything I have hated: labor without harvest; death without honor;
life without land or law. I am a black woman holding a white child in her
arms singing to her own baby lying unattended in the grass.
I am all the ways I have failed:
I am the black slave owner, the buyer of
Golden Peacock Bleach Creme and Dr. Palmer’s Skin Whitener, the selfhating
player of the dozens; I am my own nigger joke.
I am all the ways I survived:
I am tun-mush, hoecake cooked on a hoe; I am
Fourteen black jockeys winning the Kentucky Derby. I am the creator of
hundreds of patented inventions; I am Lafitte the pirate and Marie Laveau.
I am Bessie Smith winning a roller-skating contest; I am quilts and ironwork,
fine carpentry and lace. I am the wars I fought, the gold I mined,
the horses I broke, the trails I blazed.
I am all the things I have seen:
The New York Caucasian newspaper, the
scarred back of Gordon the slave, the Draft Riots, darky tunes, and merchants
distorting my face to sell thread, soap, shoe polish, coconut.
And I am all the things
I have ever loved: scuppernong wine, cool baptisms in
silent water, dream books and number playing. I am the sound of my own
voice singing “Sangaree.” I am ring-shouts, and blues, ragtime and gospels. I am
mojo, voodoo, and gold earrings.
I am not complete here; there is much more,
but there is no more time and no more space . . . and I have journeys to take,
ships to name, and crews.
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Maria Carolina Casati é professora e escritora. Leitora voraz, apaixonada pela palavra, se dedica a pesquisas usando a metodologia da história oral. É idealizadora do @encruzilinhas, um projeto de leitura e debate de textos sobre negritude, gênero, feminismos e militância. Cursa o doutorado na EACH-USP, do Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política. Seu projeto, por meio da história oral de vida, analisa narrativas de mulheres negras casadas com italianos.
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