Fragmentos de uma cartografia da poeticidade na obra Antologia Pessoal, por Carolina Ferreira - PRETA PALAVRA
No texto anterior, falamos sobre a escritora Maria Firmina dos Reis e pareceu fazer muito sentido trazer nesta edição Carolina Maria de Jesus, até para aproveitar o ensejo e informar que a minha dissertação de mestrado sobre a autora está disponível no repositório de dissertações e teses da PUC-SP. Optei por trazer um recorte da pesquisa, para aquelas pessoas que querem saber mais sobre e não vão ler o trabalho integral.
>> Confira a dissertação na íntegra em:
Minha pesquisa foi sobre a poética da Carolina Maria de Jesus, e visou compreender como a linguagem poética de Carolina de Jesus alavanca o processo de desenraizamento do ser, e, a partir de sua poeticidade, rompe com o pensamento hegemônico dominante e se amalgama às poéticas negras. Me interessa muito pensar a linguagem esteticamente, mas também como ferramenta de autorrecuperação e a produção intelectual negra por meio da prática poética.
Carolina Maria de Jesus lançou seu primeiro livro, Quarto de despejo - diário de uma favelada, em 1960. Seu sucesso e ascensão foram recebidos pela crítica e pela sociedade como uma obra do acaso. Cenário que felizmente tem mudado, em especial pelo esforço e trabalho de pessoas negras em frentes de educação, pesquisa acadêmica, curatorial entre outras.
A autora, por meio de sua poética, transforma-se e atualiza-se continuamente. Sua produção multiartistística se torna uma ferramenta de reapropriação do corpo, em movimentos de desterritorialização e reterritorialização. Esse movimento está em consonância com o das culturas negras que se apropriam de elementos do pensamento hegemônico e transcrevem e perfomam esses saberes encruzilhados com epistemes afro diaspóricas.
Acreditamos que a poeticidade da autora opera um agenciamento coletivo de enunciação, do individual para o coletivo e ancestral, por meio de um vocabulário íntimo no qual as imagens e a pluralidade tornam-se uma espécie de refúgio. A poesia, como parte do espólio da autora, é a evidência que ela nos deixa de que não tinha interesse em se fechar em temas ou gêneros específicos.
Ao olhar em retrospecto a trajetória da autora, torna-se importante refletir sobre a construção de cultura em nossa sociedade que tem como pilar o patriarcado supremacista branco, capitalista e imperialista. Um sistema que se estrutura a partir de preconceitos de raça, gênero e classe. Tratar desse sistema como supremacista branco se faz necessário para evidenciar a branquitude, é fundamental que esses sujeitos criem uma consciência racial para romper com a negação e, a partir disso, estabelecer uma prática.
O que é muito comum de se observar ainda hoje, mesmo com o advento dos posicionamentos antirracistas, são pessoas brancas que tomam frente, em especial na academia, de questões de raça se colocando em uma posição de observador, a partir do qual as pessoas de cor são mais uma vez submetidas a um lugar de objeto. Aqui não nos interessa estabelecer quem possui ou não o aval para se aprofundar criticamente em determinado assunto, mas, sim, apontar para a necessidade de avaliar criticamente essa relação, para que, mesmo de uma forma inconsciente, não se reproduzam espaços de opressão que sustentem relações de poder.
A poeticidade de Carolina Maria de Jesus é movediça, na pesquisa desenvolvida foi possível acessar alguns cruzos de sua poética que se revelaram fundantes de sua escrita, que conectam a sua poesia com a sua escrita de diários, de romance, de provérbios e suas composições musicais. Sua escrita é movida por seu ideal de poeta e sua literatura que interpreta o Brasil, sua poeticidade singulariza a sua escrita que se alimenta e transforma uma série de referências: da música, do teatro, da oralidade, dos poetas canonizados, de movimentos literários como o romantismo que se encruzilham e se transformam esteticamente com a enunciação da mulher negra, de Minas Gerais e que se muda até chegar na cidade de São Paulo, com as suas vivências na favela e, depois, com a experiência de prestígio social que vive até cair no ostracismo.
Carolina rasura a poética tradicional, de forma imprevisível, e se apropria e reinscreve também a tradição porque a relação (no sentido de Édouard Glissant e presente na poética da autora) não se trata de criar ou reproduzir hierarquias. Ela evidencia que a poética é algo inerente à vida, que, como nos aponta hooks, é um lugar que nos serve de lamento e de experimentação de uma linguagem que pode se fazer abstrata e estar no campo do sonho e da imaginação. Mas que também pode ser uma forma de comunicar em movimento de fuga do pensamento hegemônico, de uma subjetividade forjada no jogo da dupla consciência. A implicação desses gestos, pensando em uma ancestralidade, se dá por meio do tempo curvo da memória. De uma palavra ritual, que é também um gesto de autorrecuperação.
Portanto, conseguimos evidenciar que há sim uma poética que é estruturante no trabalho de Carolina Maria de Jesus e que ela opera de forma que os estudos clássicos da poética não dão contam de ler em sua totalidade. Justamente por tais estudos acabarem replicando o que foi feito pela crítica durante muito tempo na leitura da obra da autora, colocando traços de uma autoria negra como algo fora de uma literariedade ou que pode ser lido apenas no campo do erro. Inicialmente, a ideia desta dissertação era colocar as duas vias teóricas em diálogo de forma igualitária, mas percebemos, no decorrer do processo, como a própria elaboração de Carolina Maria de Jesus pedia que elas fossem conduzidas em fricção.
Para nós, pela própria característica da presente pesquisa, entendemos que não é possível esgotar todas as questões nesta dissertação, porque, enquanto escrevemos estas conclusões, novas possibilidades de conexões se abrem. O processo de escrita foi árido, já que em muitos momentos nos sentíamos diante de encruzilhadas de difíceis abstrações, além disso foi necessário também acolher aquilo que está no campo do inominável ou do mistério. Apesar de tratar das considerações finais desta pesquisa, entendemos que, na verdade, é apenas o encerramento de um dos cruzos possíveis para ler a poeticidade de Carolina Maria de Jesus e que não é capaz e não tem como objetivo apreender por completo a poética da escritora, pois a cada leitura de seus poemas e conexões, novas possibilidades se abrem.
Continuemos!
Carolina Ferreira é mestre em literatura e crítica literária da PUC-SP. Pesquisadora, crítica e curadora de literatura (medeia conversas nas horas vagas). Atua com projetos de diversidade e inclusão, é autora de conteúdo didático. É pesquisadora-fundadora do Grupo de Pesquisa de Literatura e Ancestralidade Negra – GPLAN da PUC-SP. Tem se dedicado a investigar a literatura de autoria negra, em especial a de mulheres. É associada fundadora d'A Capivara Instituto Cultural, onde também ministra cursos e integra a curadoria do acervo literário #PRETAPALAVRA.
O projeto PRETAPALAVRA é uma iniciativa d'A Capi em parceria com Maria Carolina Casati (@encruzilinhas), para divulgar e amplificar as vozes de escritoras negras.
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