Lara de Paula para Capivara Cultural - Primavera Pretapalavra
- Gustavo Marcasse
- há 3 horas
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Impossível cerzir um mundo sem linhas. Um tecido que se preze tem tramas finas, e que acolhimento dá o calor de uma fibra densa em entrelaçamentos.
Assim são feitos os meus anseios de universos outros, criados no cotidiano na entretela de desejos antigos, coletivos, compartilhados, ainda por fazer. O ponto riscado pela trajetória de uma pedra que volta no tempo e muda o futuro. Pra mim, toda dialética é exúrica.
Olho bordados alheios com admiração pelas mãos e suas habilidades, pelos contornos de suas obras de arte, pelo convite que fazem ao movimento quando nos autorizam com a trepidação de seu brilho. Chama a almejarmos o mesmo com nossas próprias costuras: pontiaguda guia, maleável matéria prima, aconchegante tessitura.
Sem rasgação de seda, poderia passar a vida inteira apenas elogiando as composições pretas que me alinhavam saberes em trilhas: Jota Mombaça, Castiel Vitorino Brasileiro, Bell Hooks, Luana Galoni, Dara Ayê, Andrezza Xavier, Juliana Tolentino, Lindwe Fidelis, Nívea Sabino, Tatiana Nascimento, NegaPreto, Preto Vivo, Ricardo Aleixo, Eliza Castro, Iza Reis, Jéssica Gaspar, são nomes que me vêm à mente ao lembrar de quem me ensina todo dia a partir da própria costur:ação. Sem dedal no pensamento senti como agulhas seus raciocínios líricos, a me picarem em estímulo de atenção ao ofício, da necessidade de ter concentração e zelo na produção de pano pra manga da linguagem.
Na barra da saia de grandes matrizes, fui criando raízes de autorreconhecimento: Conceição me lembrou que pra fazer poesia boa é preciso vê-la brotando primeiro, da bacia de roupa na beira do rio, do fio de sangue que jorra e nos lembra. Cristiane me ensinou a possibilidade de carregar elegância na recusa, beleza na revolta, poética na negação. A estratégia de saber como responder às expectativas de servidão com graciosa rebeldia, sem deixar ponto sem nó. Com Cidinha vi a importância do bastidor que sustenta toda obra, da logística de escrita por fora da lombada dos livros, do quão dura pode ser a parte que a poesia não é capaz de traduzir daquilo que se vive.
No tear contemporâneo tive entrelaçados tamanhos com artesanias ricas como de Zainne Lima, Luana Galoni, Oluwa Seyi, que me fazem sentir aconchego com suas texturas.
Quem me ensina sobre opacidade é Edouard Glissant, reconhecendo que não há ponto sem nós, e nó sem mistura: toda costura tem frente e verso. Vênus com seus mosaicos palavreados e imagéticos convida à lembrança de que composição com fartura é feita de recorte, retalho, acaso, destino, composição, alinho. Bru Sté aqualera a entretela usando as águas cristalinas de seu ser mulher-oceano, e assim caio na rede, ponto-cruz (ou encruzilhada?) em forma de peixe.
Nosso povo segue estampado em cada retalho da arte que emana. Sem findar a tapeçaria, convido a quem interessar não perder o fio da meada: se apreciar a palavra é o plano, não varrer para debaixo do pano a pele preta que a grafa. Há fibra de qualidade por trás de toda roupagem literária muito alvejada.
Lara de Paula Passos é mulher negra setelagoana, nascida em 10 de maio de 1995. Multiartista, poeta, arqueóloga, escritora, colagista. Trabalha artisticamente com videoperformance, declamação de poesia, elaboração de projetos gráficos, cursos de declamação, escrita criativa e colagens. Membra co-fundadora do LANÇA- Laboratório Amefricano de Narrativas Construtivas na Arqueologia, do coletivo Luzias de Mulheres na Arqueologia e da NegrArqueo - Rede de Arqueologia Negra. Compõe algumas coletâneas literárias, dentre elas "Escritas femininas em primeira pessoa" (Oralituras, 2020); "CAROLINAS - A nova geração de escritoras negras brasileiras" (Flup e Bazar do tempo, 2021); e "POETAS NEGRAS BRASILEIRAS - uma Antologia (Editora Cultura, 2021). Em 2021, lançou seu primeiro livro solo intitulado "Nuvilíneas" (Alecrim Edições, 2021) mediante lei Aldir Blanc, bem como a História em Quadrinhos (HQ) Por Um Fio (Kitembo edições do futuro, 2021), ilustrada por Will Rez. É mestra e doutoranda em Antropologia - Área de concentração em arqueologia - pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia PPGAn-UFMG, onde pesquisa crítica feminista da ciência e colonialidade na arqueologia. A partir da Arqueopoesia, propõe novas possibilidades de atravessamentos entre os universos arqueológicos e poéticos, e encara a escrita como uma ferramenta política de cura ancestral.
Oluwa Seyi é curadora no projeto PRETAPALAVRA, uma iniciativa da Capivara em parceria com Maria Carolina Casati, para divulgar e amplificar as vozes de escritoras negras.

Oluwa Seyi nasceu em São Paulo, na década de 90. É poeta, pesquisasora, critica literária e percussionista. Possui graduação e mestrado em Letras pela Universidade de São Paulo, e atualmente desenvolve pesquisa de doutorado também em Letras, na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela mesma instituição de ensino. Seus interesses de pesquisa são a produção artística de mulheres negras e a representação da experiência afrorreligiosa nas artes. Autora do livro de poesia O que há de autêntico em uma mãe inventada (Ed. Urutau, 2022), do zine estudo poético do corpo (2021, edição independente) e da plaquete digital Poemas que atravesssam meu corpo negro & fêmeo (2024, edição independente) . Tem poemas, contos e artigos publicados em revistas e antologias literárias e acadêmicas de diversos estados do país, como Cartas para Esperança (Ed. Malê, 2022) e Cadernos Negros 44 e 45 (Ed. Quilombhoje, 2022/2024). Além da escrita literária, interessa-se em tradução de poesia e escrita para áudio-visual. Atualmente é integrante do Sarau das pretas, coletivo artístico-literário gestado por mulheres negras. Escreve desde que se recorda e não consegue imaginar a si mesma longe do lugar de produtora, apreciadora e crítica de literatura.

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