Revisão de Ana Cláudia Romano Ribeiro
V.
O porto
Eu olhava para o mar. Meu pensamento
indolente errava ao sabor das ondas, ora
para o horizonte calmo e misterioso, ora
para o vão esforço das primeiras vagas.
Um navio se aparelhava para uma longa
viagem. Os marinheiros gemiam ao puxar as
correntes.
Os cordames vibravam no vento, a proa
bordejada de espuma estava impaciente para
partir.
Eu pensava nas terras boreais que açoitam
as ondas geladas, no mar inerte e branco,
frio como a morte,
E também nas regiões entorpecidas pelo
calor, nas costas ardentes sobre as quais se
enfraquecem as lâminas lassas.
E eu pensava ainda nos países
desconhecidos, nos mil ruídos que ninguém
ouve, em todas as obras sem testemunhas.
Mas as velas inflaram solenemente, o navio
saudou o espaço.
Então levantei os olhos, um homem estava
debruçado na popa do navio, ele me olhou
logo que o vi.
Senti que eu tocava o porto e que para
sempre estava abrigada das tempestades.
Minha alma lançou âncora em seus olhos.
Mas o navio, com suas grandes asas,
se afastou como uma águia que carrega uma
presa.
Desde então, erro sem descanso pelo mar
deserto.
A tempestade me achincalha sem piedade, e
já faz tempo que não acredito mais nas
estrelas que acendem como faróis no
horizonte.
V.
Le port
Je regardais la mer. Ma pensée nonchalante
errait au gré des flots, tantôt vers le calme et
mystérieux horizon, tantôt vers l’activité
vaine des premières vagues.
Un navire appareillait pour un long voyage.
Les matelots geignaient en tirant des
chaînes.
Les cordages vibraient dans le vent, la proue
bordée d’écume était impatiente au départ.
Je songeais aux terres boréales que
flagellent des flots glacés, à la mer inerte et
blanche, froide comme la mort,
Et aussi aux contrées engourdies de chaleur,
aux rivages brûlants sur lesquels s’affaissent
des lames lassées.
Et je pensais encore aux pays inconnus, aux
mille bruits que nul n’entend, à toutes les
œuvres sans témoins.
Mais les voiles se gonflèrent
solennellement, le navire salua l’espace.
Alors je levai les yeux, un homme était
accoudé à l’arrière du navire, il me regarda
lorsque je le vis.
Je sentis que je touchais au port et que pour
toujours j’étais à l’abri des orages. Mon âme
jeta l’ancre dans ses yeux.
Mais le navire, avec ses grandes ailes,
s’éloigna comme un aigle qui emporte une
proie.
Depuis, j’erre sans relâche sur la mer
déserte.
La tempête me bafoue impitoyablement et
voici longtemps que je ne crois plus aux
étoiles qui s’allument comme des phares à
l’horizon.
O porto faz parte de um conjunto de poemas em prosa publicados na Renaissance littéraire et artistique entre 1872 e 1873, importante revista semanal que se propunha o renascimento da arte após as turbulências da Guerra Franco-Prussiana e da Comuna de Paris. Criada pelo grupo de poetas que se intitulavam vilains bonshommes, dentre eles o redator chefe Émile Blémont, Léon Valade, Jean Aicard, ou aqueles que posaram para Fantin-Latour em Esquina de Mesa (1872), a Renaissance teve vida curta (1872-1874), mas participou ativamente da vida literária de Gautier. Além dos poemas em prosa dos quais extraímos O porto, a autora retoma ali seu interesse pela poesia chinesa em Les souffles du royaume, fragmentos do Livro das Odes/Shijing (詩經), com tentativas tradutórias que apontam para o trabalho da edição aumentada do Livro de Jade de 1902 e é também onde vemos parte das suas trocas com Victor Hugo, exilado em Guernsey. Ali o poeta manifesta publicamente seu pesar pela morte de Théophile Gautier em outubro de 1872, o que de certa forma justifica o tom especialmente melancólico das produções de Judith nesse ano, e publica um soneto - um dos seus dois únicos conhecidos - dedicado a Judith: Ave, Dea, Moriturus te salutat !/Salve, Deusa, aqueles que vão morrer te saúdam!
Coração triste ao sol
À maneira de Su-Tchon
O vento de outono arranca as folhas das
árvores e as dispersa sobre a terra.
Eu as observo saírem voando sem pesar,
pois só eu as vi chegar, e só eu as vejo partir,
A tristeza projeta sua sombra sobre o meu
coração como as altas montanhas fazem
noite no vale.
Os sopros do inverno mudam a água em
pedra brilhante; mas, à primeira vista do
verão, ela voltará a ser cascata radiante.
Quando o verão estiver de volta, vou me
sentar na rocha mais alta para ver se o sol
derreterá meu coração.
Cœur triste au soleil
Selon Su-Tchon
Le vent d'automne arrache les feuilles des
arbres et les disperse sur la terre.
Je les regarde s'envoler sans regret, car seul
je les ai vues venir, et seul je les vois partir,
La tristesse projette son ombre sur mon
cœur, comme les hautes montagnes font la
nuit dans la vallée.
Les souffles d'hiver changent l'eau en pierre
brillante; mais au premier regard de l'été elle
redeviendra cascade joyeuse.
Quand l'été sera de retour, j'irai m'asseoir sur
la plus haute roche, pour voir si le soleil fera
fondre mon cœur.
Publicado pela primeira vez na revista literária L’Artiste em 1864, Coração triste ao sol está entre os primeiros poemas em prosa aperfeiçoados para compor o Livro de Jade. Atribuído ao poeta desconhecido Su-Tchon, ele possui três outras traduções em língua portuguesa: A primeira devemos a Machado de Assis, presente na Lyra chineza do seu livro de poemas Phalenas (1870). A segunda foi proposta pelo poeta português António Feijó no Cancioneiro Chinez (1890). E a terceira, em versos livres, provém da colaboração recente entre José Miranda e Gilson Santos (2023). Recuperado depois por Feijó, Machado intitulou sua tradução Coração triste falando ao sol, escolha que tem ritmo próprio. Além disso, sua forma, a rigor, em alexandrinos clássicos, expressa mais intensamente sua musicalidade na primeira canção do Opus 18 de Alberto Nepomuceno, Coração triste, que sem dúvidas supera seu par Filomela (texto de Raimundo Corrêa) em popularidade e número de interpretações ainda hoje.
O pavilhão de porcelana
No meio do pequeno lago artificial, ergue-se
um pavilhão de porcelana verde e branca;
chega-se lá por uma ponte de jade arqueada
como o dorso de um tigre.
Nesse pavilhão, alguns amigos vestidos de
roupas claras bebem juntos taças de vinho
morno.
Eles conversam alegres ou traçam versos
colocando seus chapéus para trás,
arregaçando um pouco suas mangas,
E, no lago onde a pequena ponte invertida
parece um crescente de jade, alguns amigos
vestidos de roupas claras bebem, de cabeça para baixo,
num pavilhão de porcelana.
Le pavillon de porcelaine
Au milieu du petit lac artificiel s'élève un
pavillon de porcelaine verte et blanche; on y
arrive par un pont de jade qui se voûte
comme le dos d'un tigre.
Dans ce pavillon quelques amis vêtus de
robes claires boivent ensemble des tasses de
vin tiède.
Ils causent gaiement ou tracent des vers en
repoussant leurs chapeaux en arrière, en
relevant un peu leurs manches,
Et, dans le lac où le petit pont renversé
semble un croissant de jade, quelques amis
vêtus de robes claires boivent, la tête en bas,
dans un pavillon de porcelaine.
O pavilhão de porcelana é atribuído a Li Bo (701-762) e já se passou por um dos seus mais célebres poemas sem mesmo ter sido composto por ele. Fusako Hamao sugere que Gautier tenha se inspirado em Banquete no pavilhão Tao/ Yan Tao jia tingzi (宴陶家亭子) do poeta chinês, mas a comparação é das mais vagas. De todo modo, é o mais popular do Livro e, além de nomear o pequeno volume de (re)traduções do poeta russo Nicolai Gumilev Farforovyi pavil'on (1918) e aparecer no texto do terceiro lieder d’A canção da terra de Gustav Mahler, o pesquisador tcheco Ferdinand Stocès oferece algumas informações sobre a celebridade desse pseudo Li Bo pela Europa:
Na Alemanha, em particular, nos primeiros decênios do século passado, figurava em muitas colecções de Nachdichtungen e entrou também, transitando através do alemão, nas recolhas e paráfrases de poemas chineses noutras línguas. Assim, na República Checa, após a Segunda Guerra Mundial, os amantes de poesia chinesa, leitores dos Cantos da China Antiga de B. Mathesius, sabiam de cor este poema¹.
Em língua portuguesa O pavilhão de porcelana foi traduzido em versos por António Feijó e, naturalmente, o poema aparece na tradução integral do Livro feita por José Miranda e Gilson Santos.
¹ STOCÈS, Ferdinand. O Livro de Jade de Judith Gautier: características gerais das edições de 1867 e de 1902. Revista Oriente, 2003, n. 7, p. 16.
Judith Gautier (1945-1917), ou Judith Walter, ou Judith Mendès (de 1869 até 1874), por vezes F. Chaulnes, foi a primeira mulher eleita para fazer parte da Academia Goncourt em 1910. Escritora prolífica, publicou prosa, poemas, poemas em prosa, peças de teatro e centenas de artigos no âmbito das letras e artes até seus últimos anos de vida. Filha da cantora italiana Ernesta Grisi e do poeta Théophile Gautier, Judith nasceu em Paris, morreu em Dinard, nunca viajou para longe, mas sempre escreveu sobre o oriente. Estreou sua carreira literária com o livro de poemas em prosa inspirados da poesia clássica chinesa, O Livro de Jade (1867), e continuou escrevendo sobre o extremo oriente até expandir seu público ao Teatro do Odéon com a peça “japonesa” La Marchande de sourires, representada cento e quarenta vezes em 1888. Apesar de muitas vezes ser denominada musa do parnaso, declara independência absoluta pois, como Anatole France bem observou, nunca alguém teve mais que Judith o direito de dizer como o poeta da Antologia: “Cantei para as Musas e para mim”.
Ana Beatriz Farias Costa de Brito é licencianda em letras português-francês pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Atualmente desenvolve o projeto “Le Livre de Jade e as reprises do poema em prosa de Judith Gautier” (Processo n.º 2022/15907-0) orientado por Francine Fernandes Weiss Ricieri e anteriormente desenvolveu, também na Unifesp, de forma voluntária o projeto de iniciação científica “Traços do Livre de Jade de Judith Gautier”, com orientação de Maria Lúcia Dias Mendes, em que trabalhou no levantamento bibliográfico sobre as fontes dos poemas do Livro de Jade.
Ana Cláudia Romano Ribeiro desenvolve projetos nos campos da tradução, das artes visuais, da escrita e da performance. Suas áreas de formação são Letras, Etnomusicologia, Teoria e História Literária e Estudos Clássicos. Atualmente é professora de literaturas de língua francesa no Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Em 2022, fez a curadoria do #poesiaqueer para A Capivara Cultural, onde coordena o NaLetra, com Deise Abreu Pacheco. Publicou O fragmento 31 de Safo e outros poemas (Urutau, 2023), A casa das pessoas (poemas, 7Letras, 2023), A vida de Deise, com Deise Abreu Pacheco (tirinhas, Hucitec, 2022), Sol talvez seja uma palavra (com o coletivo Anáguas, 7Letras, 2022) e Ave, semente (Editacuja, 2021). Duas de suas publicações mais recentes em periódico online são uma resenha desenhada para o romance desenhado Autoportrait de Paris avec chat, de Dany Laferrière (Criação & Crítica, 32, 2022), e “Figurações de pessoa-planta: traduzindo o poema Les pur-sang, de Aimé Césaire, à luz dos ensaios de Suzanne Césaire" (Translatio, 25, 2023). Traduziu, anotou e organizou a Utopia (1516) de Thomas More (Editora da UFPR), no prelo.
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