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A ATUALIDADE DE KIERKEGAARD: para quem se interessa por processos de criação em escrita e leitura

por Deise Abreu Pachedo




A obra do autor dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855) influenciou a produção literária, ensaística e filosófica de autores tão diversos quanto Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Martin Heidegger, Fernando Pessoa, Hilda Hilst, Guimarães Rosa, James Baldwin, Franz Kafka, Jorge Luis Borges, Albert Camus, María Zambrano, Miguel de Unamuno, Thomas Mann, Rainer Maria Rilke, Thomas Bernhard, Friedrich Dürrenmatt, Henrik Ibsen, dentre muitos outros.


A largueza e pluralidade de abordagens da obra de Kierkegaard no campo filosófico, literário, teológico, psicológico e artístico, expressam a riqueza da produção do autor, que continua desafiando e impulsionando novas aproximações e questionamentos em nossos dias. Mas o que haveria de tão atraente e interessante na obra desse autor? Embora tal pergunta possibilite, evidentemente, uma multiplicidade de respostas, também nos permite apontar para o assunto decisivo que determina todo o pensamento de Kierkegaard: a preocupação com a existência humana.


Todavia, a existência humana tratada a partir de dentro: por meio de fenômenos como a angústia e o desespero; por meio de paixões como o amor e a fé; por meio da vontade de tornar-se si mesmo; por meio de conceitos como a ironia e o humor. Mas, fundamentalmente, por meio da linguagem: pela elaboração de uma escrita que explore formas de comunicação e de investigação para tais fenômenos, conceitos e paixões.


Nesse sentido, o que está em jogo em Kierkegaard é a investigação do “como”: dos modos de expressão e de comunicação da complexidade da existência humana enquanto uma condição intermediária, constituída pela tensão constante entre liberdade e necessidade, finitude e infinitude, temporalidade e eternidade. Em outras palavras, a existência humana compreendia como aquilo que está entre a concretude de nossa realidade factual e a abstração de nossos ideais.


Tal condição intermediária da existência humana, sob a perspectiva do “como”, tem como consequência principal certa resistência a sua própria representação, ou seja, a resistência ao estabelecimento de conceitos ou noções estáveis, manifestando assim uma condição profundamente ambígua e contraditória.


Do ponto de vista literário e artístico, particularmente, esse caráter ambíguo e contraditório da existência humana assume um sentido positivo, uma vez que possibilita aos seus agentes criadores à experimentação de novas formas de comunicação e de expressão, novas sintaxes, para elaborar a tensa tessitura dessa contraditória ambivalência.




Entre caminhos: meus percursos na obra de Kierkegaard


Figura 1: Deise Abreu Pacheco e o busto de Kierkegaard no Søren Kierkegaard Research Center (SKC), da Universidade de Copenhague (Dinamarca), em 2015.


Em meu livro Assistir e ser assistida: vias e limites de uma estética existencial. Um percurso pela obra de Søren Kierkegaard (Hucitec Editora, 2021), resultado da minha pesquisa de doutorado (bolsa FAPESP) – realizada na Universidade de São Paulo, em parceira com a Universidade de Copenhague – proponho-me a descrever os caminhos e descaminhos que me levaram à obra de Kierkegaard, e, assim, explorar de que forma seus escritos potencializaram minha pesquisa em processos de criação, ampliando acessos a procedimentos artísticos de escrita e leitura, cultivados a partir de textos do autor.

Nesse percurso, dediquei-me ao estudo de obras de Kierkegaard assinadas por seus autores-pseudônimos, espécies de heterônimos, que assumem visões da vida e, portanto, perspectivas de comunicação distintas. Assim, falar da obra de Kierkegaard é também falar da obra de uma legião de diferentes autores de sua autoria. Quem se dispuser a percorrer a produção desse autor dinamarquês, da primeira metade do século XIX, será surpreendido por nomes como Johannes de silentio (“João do Silêncio”), Constantin Constantius (“Constante Constantino”), Johannes Climacus (“João Climacus”), Vigilius Haufniensis (“O Vigilante de Copenhague”), Victor Eremita (“Vitor Eremita”), William Afham (“Guilherme Por ele mesmo”), Frater Taciturnus (“Irmão Taciturno”), Nicolaus Notabene (“Nicolau Note Bem”), Hilarius Bogbinder (“Hilário Encadernador”), dentre outros. Contudo, também encontrará o nome S. Kierkegaard, como editor da obra de alguns de seus próprios autores e como autor de múltiplos escritos, discursos devocionais e religiosos, diários de trabalho e pessoais, artigos críticos no jornal Fædrelandet, além da revista O Instante, da qual era editor e único colaborador.


Figuras 2 e 3: Fotos da autora em Copenhague, 2015.


Em minhas incursões pela obra de Kierkegaard, trilhei roteiros especiais na Dinamarca, caminhos surpreendentes, efetivamente transitados pelo autor ao longo de sua vida. Um desses itinerários é a “Floresta de Grib (em dinamarquês, Gribs-Skov), onde visitei o “Recanto dos Oito Caminhos” (em dinamarquês, Otteveiskrogen), mencionado por um de seus autores-pseudônimos, em In Vino Veritas (“No vinho, a verdade”) – um dos capítulos que integram a obra Estádios no Caminho da Vida – como uma forma de refúgio, de retiro, tal e qual um esconderijo, um recanto secreto.



“Em Gribs-Skov, há um lugar chamado Recanto dos Oito Caminhos; só o encontra quem se dá ao trabalho de o procurar, pois que não vem indicado em nenhum mapa. De fato, o nome parece conter em si uma contradição, pois como poderia o encontro de oito caminhos constituir um recanto; como poderia conciliar-se o trajeto aberto e público com o lugar isolado e recolhido?” (trecho de In Vino Veritas, pelo autor-pseudônimo William Afham. Kierkegaard, tradução de José Miranda Justo, S. Lisboa: Ed. Antígona, 2005)







Foto 4: “Recanto dos Oito Caminhos” na Gribs-Skov/Dinamarca, fotografado por Deise A. Pacheco durante percurso de bicicleta pela “trilha de Kierkegaard”, guiado pelos pesquisadores Anna Strelis Söderquist e K. Brian Söderquist em 2014.



O “Recanto dos Oito Caminhos” é, portanto, antes de tudo, uma contradição: vereda e abrigo, aventura e resguardo, via e limite. Refere-se também a algo escondido, secreto, que não figura em nenhum mapa, e que exige, por isso mesmo, uma busca apropriada. Se tivesse que, todavia, definir em uma única palavra o “Recanto dos Oito Caminhos”, diria que se assemelha a uma encruzilhada.


Assim, acredito que poderemos adentrar o assunto central da obra de Kierkegaard por meio desta ideia: a existência humana é uma contradição, uma encruzilhada.



 

Deise Abreu Pacheco (Dedé ) é professora d'A Capivara e , em novembro, ministra ao lado do professor Marcio Gimenes de Paula, uma oficina onde vamos refletir sobre questões literárias na obra de Søren Kierkegaard, além de praticar exercícios de criação em escrita e leitura.





Deise Abreu Pacheco (Dedé)


Atua na fronteira entre artes cênicas, filosofia e literatura. É doutora em Artes Cênicas (Bolsa FAPESP/Capes) pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa doutoral em filosofia no Søren Kierkegaard Research Centre, da Universidade de Copenhague (Dinamarca). É autora do livro Assistir e ser assistida: via e limites de uma estética existencial. Um percurso por escritos de Søren Kierkegaard (Hucitec Ed., 2021). Possui graduação e mestrado em Artes Cênicas (ECA/USP). Ao longo de trinta anos de carreira, tem aliado sua experiência em artes da cena a práticas de escrita e leitura de textos literários e filosóficos, em abordagens artístico-pedagógicas diversificadas com enfoque no campo sensível e imaginativo da experiência estética (experimentos e mediações artísticas, oficinas livres e atividades em âmbito acadêmico). Integrou o corpo docente do programa de Pós-Graduação em Escrita Criativa da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Atuou como servidora pública na função de Orientadora de Arte Dramática do Teatro da Universidade de São Paulo (TUSP, 2009-2014), órgão da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão da Universidade de São Paulo. Foi coordenadora editorial da Revista aParte (TUSP, 2010-2014), bem como curadora da I Bienal Internacional de Teatro da Universidade de São Paulo (TUSP, 2013). No campo ficcional, é autora das tirinhas A vida de Deise, em parceria com a poeta, tradutora e professora em literatura francesa Ana Cláudia Romano Ribeiro, divulgadas semanalmente no Instagram (@pachecodeiseabreu) e no Facebook (DeiseAbreuPachecoDedé).






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