top of page

Fabio Weintraub, força e tensão, por Henrique Provinzano Amaral - Poesia Queer


Minha quarta e última indicação para a curadoria #poesiaqueer é novamente, como na terceira delas (sobre Matheus Guménin Barreto, que também pode ser lida neste site), um poeta brasileiro de nosso tempo: o paulistano Fabio Weintraub (1967). Autor de alguns livros de poemas, o mais antigo datando da década de 1990 (Sistema de erros, Arte Pau-Brasil, 1996), Weintraub já teve títulos publicados em Cuba e em Portugal, além de haver participado de numerosas antologias de poesia brasileira, neste país ou no exterior. É também doutor em Letras, editor e tradutor.


Fotografia de Pádua Fernandes


Mais do que o dono de um currículo extenso, Fabio Weintraub é, a meu ver, um dos poetas brasileiros recentes que melhor construíram uma lírica de ambiência urbana, retorcida não com as dobras de um estilo neobarroco, mas com a “dura poesia concreta” das esquinas de Sampa. A expressão de Caetano Veloso não aponta, aqui, para um aproveitamento mais sistemático do concretismo paulista, como é o caso por exemplo de José Paulo Paes, mas para a concretude de um pathos que se vê, a todo momento, alimentado pela experiência urbana brasileira, sobretudo metropolitana, em suas dimensões tão variadas quanto contraditórias. Em Falso trajeto (Patuá, 2016, p. 25), antologia comemorativa dos vinte anos de trajetória do poeta, lemos:



castanho


depois da operação

minha letra continua bonita

já não encontro

na gola do pijama, na fronha

as mesmas manchas escuras

em compensação

o barbeiro não me cumprimenta mais

as pulgas desprezam meu cão


descubro com tristeza

que a faxineira da repartição

me chama de “meu lindo”

por pura formalidade


do outro lado da rua

os trens que passam

não sabem a cor do meu cabelo



As “manchas escuras” – castanho é a cor delas ou do cabelo? – estão em toda a parte nessa lírica que leva a sério a exibição da “marca suja da vida”, preconizada pelo Manuel Bandeira de “Nova poética” (Belo belo), assim como se fazem presentes nela, a todo momento, as fraturas, os fluidos corporais, as criaturas indesejáveis, enfim, todas as nódoas que sujam o brim branco de uma poesia engomada. Não se trata, porém, de uma poética que busque o sórdido simplesmente para apontá-lo na realidade, mas, ao contrário, do exercício de desentranhar aquilo que pode haver de transformador (mais do que belo, talvez) nesse real. Daí as imagens frequentemente torturadas, os versos que ostentam pés quebrados, além uma (auto)ironia quase constante no que diz respeito ao sujeito lírico. Nesse sentido, é exemplar o poema “Caneta”, de Quadro de força (Patuá, 2019, p. 22), que afirma: “quem segura o tubo excita/ o membro cheio/ mas entupido/ de tinta quente e vencida”. É a caneta, a pistola (a primeira estrofe traz “quem segura a caneta/ entra na linha de tiro”) ou o pênis?


Provavelmente os três. E é essa riqueza ambígua de imagens em torno da escrita, da violência e do sexo que atravessa o volume Quadro de força, constituindo uma de suas tônicas. Se essa tríade está presente em obras de outros artistas que poderíamos qualificar como queer – penso, por exemplo, no filme A lei do desejo (La ley del deseo), de Pedro Almodóvar –, a força incomum da poesia de Fabio Weintraub está, desse ponto de vista, na originalidade do arranjo. Pois não se trata somente de exaltar o afeto homossexual, nem de denunciar o universo de violência que o rodeia (como no poema “Litígio”, de Quadro de força, em torno da figura de um michê), mas de friccionar, não sem sarcasmo, vários dos discursos que o descrevem num tempo histórico em que, se é certo haver mais visibilidade para as populações ditas minoritárias, o ódio e a discriminação estão longe de ter desaparecido.


No poema “Onde jorra o leite e o mel”, de Quadro de força (p. 23), reproduzido na íntegra abaixo, o eu lírico expõe pornograficamente o sexo entre homens, ironizando a partir dessa cena, em alta voltagem, os discursos mercadológico, médico e – por que não? – bíblico. Em “Sete poemas trans” (Quadro de força, p. 58), reproduzido parcialmente abaixo, aborda a realidade de discriminação vivida por muitas mulheres trans no Brasil, trazendo para o centro do palco desse poema de sete faces (todas esbofeteadas), a violência da linguagem médica, jurídica e policial. Da agressão de perguntar o nome “verdadeiro/de registro”, contrariando um direito já adquirido, ao xingamento puro e simples (“viado escroto de merda/ pobre preto cadeirante/ e ainda quer ser mulher?”), há o desfile de uma linguagem do ódio que contamina o poema, complexificando sua posição enunciativa e distanciando-o do mero panfleto. Notemos a ironia pungente da rima “genitália/gentalha”, assim como o fato de que os caracteres em itálico ora reportam o discurso da vítima, ora do perpetrador.


É na coragem de buscar uma forma torturada, violentada, que me parece residir a tensão produtiva desse quadro de força proposto por Weintraub. E é com seus poemas que encerro minha curadoria para a #poesiaqueer:



Onde jorra o leite e o mel


do pau repleto

recebo o leite em três jatos:


no peito

na boca

nos olhos


parcelo sem medo de entrar

no crédito rotativo

em tempo de vacas magras


se bater, vira manteiga

se cuspir, o leite talha


satisfação garantida ou

seus anticorpos de volta





Sete poemas trans

Para Amara Moira e Daniela Andrade



I. desce


comecei com sutiãs

para mastectomizadas


também me sentia assim

mutilada

(uma perninha a menos

num cromossomo X)


os sutiãs eram caros

mas o enchimento

em compensação

não se deslocava


como o silicone industrial

na maçã do rosto

desce para a bochecha

depois de um soco


[...]



III. ainda quer


seu nome!

anita


o verdadeiro

de registro


tenho por lei o direito

de escolher como me chamam


viado escroto de merda

pobre preto cadeirante

e ainda quer ser mulher?



IV. protocolo transexualizador


vinte vezes mais prolactina

que uma lactante cis


o protocolo exige

esse perfil hormonal


castração química

pede a nova genitália


ainda quer ter libido?

gentalha!


[...]








HENRIQUE PROVINZANO AMARAL é poeta, tradutor e pesquisador. Graduado, mestre e doutorando em Letras pela USP, dedica-se ao estudo e à tradução de escritores.as do Caribe francófono, especialmente do martinicano Édouard Glissant. Como tradutor, publicou, além de ensaios desse autor, os livros Jan Mapou Jan (com Vanderley Mendonça, Selo Demônio Negro, 2019), miniantologia do poeta haitiano Jan Mapou; a coletânea Estilhaços – antologia de poesia haitiana contemporânea (Selo Demônio Negro, 2020), que também organizou; e o livro de ensaios Queer Zones 1 (com Thiago Mattos, Crocodilo/n-1 edições, 2022), de Sam Bourcier. Como poeta, Henrique é autor do livro Quatro cantos (Patuá, 2020) e de poemas publicados esparsamente em veículos como Ruído Manifesto, Posfácio, Mallarmargens. Participou como tradutor convidado na FLIMA – Festa Literária da Mantiqueira, em 2018, e no Festival Vo-Vf, em Gif-sur-Yvette, França, em 2023.














1 Comment


Leitura em rara tomada acurada e sensível. Felicitações. Fabio Weintraub é poeta de muitas faces, nem todas esbofeteadas, mas todas com a coragem de dar-se aos tapas. Alegria por conhecer melhor o poeta e o crítico que o (re)apresenta à leitora.

Nilma Lacerda

Like
bottom of page