A literatura pode nos seduzir de várias maneiras: pela história, que nos faz querer acompanhar seus eventos, causando-nos apreensão, medo, curiosidade, suspense, dúvida, alegria, terror e tantas coisas mais; pelas personagens, cujas características podem nos provocar repulsa, identificação, compaixão, sentimentos os mais diversos; pelo espaço, que pode nos fazer transitar por lugares que realmente existem ou foram inventados, de tal modo que por vezes a nossa memória nos trai, fazendo-nos crer que um dia realmente estivemos ali; pelo tempo, que nos puxa ou empurra, levando-nos ora numa linear sequência de fatos, ora num vaivém estonteante que mescla presente e passado (e talvez futuro!), deixando-nos à mercê de quem nos conta a história ou de quem se lembra dela — e aqui chegamos a outra maneira dessa sedução, a que vem através de quem conta, a que vem através da voz narrativa, que, ao nos dar tudo que foi dito anteriormente, pode ser também ela causa de assombro, de fascínio, de comunhão.
Lygia Fagundes Telles (São Paulo, 1918–2022), com seus textos, conseguia seduzir seus leitores através de tudo isso: a história, as personagens, a ambientação, a manipulação temporal e, finalmente, a forma de contar. Talvez possamos dizer que não há sequer um texto seu cujo modo narrativo não se preste a ser “objeto de estudo”, algo que nos chame a atenção.
Pode-se dizer, de Lygia, que ela parecia ter consciência dos efeitos de cada mínimo elemento existente em sua obra. Isto que estou dizendo, claro!, é uma suposição. Não há como dizermos com certeza sobre intenções autorais, mas podemos dizer que determinados textos suscitam em nós esta ou aquela inferência.
Mas, eu ia falar sobre os modos narrativos. Pois bem, as vozes narrativas dos textos lygianos são muito ricas, e nos fazem pensar em coisas como: caramba, foi por isso, por estar sendo narrado assim, que eu tomei um susto; foi por tal escolha que eu acreditei no que não poderia acreditar; fui leviano em julgar as personagens como julguei; não posso ter certeza alguma sobre o que me foi dito... E assim, ler seus textos torna-se não apenas uma relação entre nós e suas personagens, mas uma relação entre nós e variadas formas de contar uma história; entre nós e como uma escolha narrativa pode criar este ou aquele efeito em quem lê o texto.
Mas para além de uma grande narradora, Lygia era também uma exímia “diretora”, pois conhecia muito bem o corpo humano e suas nuances, escolhendo gestos precisos e significativos para suas personagens.
Leio Lygia desde minha adolescência. Minha primeira leitura de sua obra foi o romance As meninas (que experiência foi ler aquilo, entrar no mundo de Ana Clara, Lia, Lorena). Há 36 anos, entro e saio de seus textos, mas eles não saem de mim. Ela é “meu contista preferido”. Em minha dissertação de mestrado, analisei três de seus contos, considerando-os como alegorias; em minha tese de doutorado, fiz uma edição crítica do livro Antes do baile, anotando todas as diferenças entre a primeira e a última edição de cada um de seus contos e analisando algumas dessas revisões. Lygia era uma insatisfeita, e sempre mexia em seus textos. Publiquei em livro a tese, com o nome A construção de Lygia Fagundes Telles: edição crítica de Antes do baile verde (Edufal, 2016). E usei a palavra “construção” porque, no livro, trato de como a escritora foi-se fazendo, como seu mundo ficcional muito próprio foi aos poucos sendo “construído”, com seus elementos recorrentes, com as leis que regem esse universo. E para este ano de 2023, preparo uma nova edição crítica. Agora, de um de seus romances.
Para finalizar, faço um pedido: leiam os textos de Lygia sem tentar compreendê-los. Não parem de ler se de repente vocês se depararem com algo do tipo “estou entendendo nada”. Afinal, a razão é apenas um dos modos de nos relacionarmos com o mundo. Grande parte de nossas experiências prescinde da razão, valendo-se de outras partes nossas.
O mundo de Lygia Fagundes Telles é pleno de mistério, como misteriosos somos nós. “O ser humano é inalcançável, inacessível e incontrolável”, ela costumava dizer. Entrar no mundo lygiano sem exigir uma compreensão racional pode nos ajudar a lidar com nosso cotidiano, tão cheio do inapreensível.
Nilton Resende
Nilton Resende nasceu em Maceió/AL. É Professor Adjunto de Literatura da Universidade Estadual de Alagoas/Campus Zumbi dos Palmares, em que coordena os Grupos de Pesquisa Ensino de Literatura e Estudos da Narrativa. Integra a Cia. Ganymedes de teatro, para a qual adaptou a novela Mário e o Mágico, de Thomas Mann, para o espetáculo O Mágico (2007), que codirigiu e protagonizou. Publicou os livros O Orvalho e os dias (poesia, 1998, 2007, 2019), Diabolô (contos, 2011, 2020), A construção de Lygia Fagundes Telles: edição crítica de Antes do Baile Verde (2016), Fantasma (romance, 2021). Tem contos e poemas traduzidos e publicados em revistas francesas e inglesas. É um dos administradores do perfil @BibliotecaLygiana, no Instagram. É editor do selo literário Trajes Lunares. No cinema, trabalha como roteirista, ator, preparador e diretor de elenco. Roteirizou e dirigiu o curta-metragem A barca (2020), baseado no conto “Natal na barca”, de Lygia Fagundes Telles.
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