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Jorge Luis Borges: prólogo do livro "Elogio da sombra" (1969)



Sem a princípio me propor a isto, consagrei minha já longa vida às letras, à cátedra, ao ócio, às tranqüilas aventuras do diálogo, à filologia, que ignoro, ao misterioso hábito de Buenos Aires e às perplexidades que, não sem alguma soberba, denominam-se metafísica. Também não faltou a minha vida a amizade de uns poucos, que é o que importa. Creio não ter um único inimigo ou, se houve algum, nunca me foi dado saber. A verdade é que ninguém pode nos ferir, a não ser as pessoas que amamos. Agora, aos setenta anos de minha idade (a frase é de Whitman), dou à estampa este quinto livro de versos.


Carlos Frías sugeriu-me que aproveitasse o prólogo para uma declaração de minha estética. Minha pobreza, minha vontade opõem-se a esse conselho. Não possuo uma estética. O tempo me ensinou certas astúcias: evitar os sinônimos, que têm a desvantagem de sugerir diferenças imaginárias; evitar hispanismos, argentinismos, arcaísmos e neologismos; preferir as palavras habituais às palavras assombrosas; intercalar num relato traços circunstanciais, exigidos agora pelo leitor; simular pequenas incertezas, pois, se a realidade é precisa, a memória não o é; narrar os fatos (isto aprendi em Kipling e nas sagas da Islândia) como se não os entendesse totalmente; lembrar que as normas anteriores não são obrigações e que o tempo se encarregará de aboli-las. Tais astúcias ou hábitos não configuram, decerto, uma estética. Além do mais, não acredito em estéticas. Em geral, não passam de abstrações inúteis; variam de escritor para escritor e mesmo de texto para texto e não podem ser mais que estímulos ou instrumentos ocasionais.


Este, como escrevi, é meu quinto livro de versos. É razoável supor que não será melhor nem pior que os outros. Aos espelhos, labirintos e espadas que já pode prever meu resignado leitor se somaram dois novos temas: a velhice e a ética. Esta, como se sabe, nunca deixou de preocupar certo amigo muito estimado com que a literatura me brindou, Robert Louis Stevenson. Uma das virtudes que me fazem preferir as nações protestantes às de tradição católica é seu cuidado com a ética. Milton queria educar os meninos de sua academia no conhecimento da física, das matemáticas, da astronomia e das ciências naturais; o doutor Johnson observaria, em meados do século XVIII: “A prudência e a justiça são preeminências e virtudes que correspondem a todas as épocas e a todos os lugares; somos perpetuamente moralistas e só às vezes geômetras”.


Nestas páginas convivem, creio que sem discórdia, as formas da prosa e do verso. Poderia invocar antecedentes ilustres — o De consolatione de Boécio, os contos de Chaucer, o Livro das mil e uma noites; prefiro declarar que essas divergências me parecem acidentais e que gostaria que este livro fosse lido como um livro de versos. Um volume, em si, não é um fato estético, é um objeto físico entre outros; o fato estético só pode ocorrer quando o escrevem ou o lêem. É comum afirmar que o verso livre não passa de um simulacro tipográfico; penso que essa afirmação embosca um erro. Além de seu ritmo, a forma tipográfica do versículo serve para anunciar ao leitor que a emoção poética, não a informação ou o argumento, é o que está a sua espera. Almejei, por vezes, a vasta respiração dos psalmos* ou de Walt Whitman; com o passar dos anos comprovo, não sem melancolia, que me limitei a alternar alguns metros clássicos: o alexandrino, o decassílabo, o heptassílabo.


  Em alguma milonga tentei imitar, respeitosamente, a florida coragem de Ascasubi e das coplas dos bairros.


A poesia não é menos misteriosa que os outros elementos do orbe. Um ou outro verso afortunado não pode envaidecer-nos, porque é dom do Acaso ou do Espírito; só os erros são nossos. Espero que o leitor descubra em minhas páginas algo que possa merecer sua memória; neste mundo a beleza é comum.


  J. L. B.

  Buenos Aires, 24 de junho de 1969




    * Escrevo psalmos deliberadamente. Os indivíduos da Real Academia Española querem impor a este continente suas incapacidades fonéticas; aconselham-nos a empregar formas rústicas: neuma, sicología, síquico. Ultimamente, ocorreu-lhes escrever vikingo em lugar de viking. Desconfio que muito em breve ouviremos falar da obra de Kiplingo.



Tradução de Josely Vianna Baptista.

Do Livro "poesia Jorge Luis Borges", Companhia das Letras, 2009.






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